terça-feira, 21 de outubro de 2008

Dois "Obamas": Gabeira e Kassab


Arnaldo Jabor
DEU EM O GLOBO


A vitória desses homens moderniza a política


Nos velhos tempos do Partidão, o PCB, havia o conceito de "massa atrasada". Assim eram chamados os militantes que ainda não eram batizados pelas luzes salvadoras de Lenin ou Stalin, para fazer com fé e preparo a "revolução brasileira", esse milagre que nunca chegou. Hoje, a "massa atrasada" continua sendo o alvo da velha política brasileira e une tanto o populismo de direita do Rio como o populismo de esquerda de São Paulo.

No entanto, as eleições para a prefeitura de São Paulo e a do Rio talvez inaugurem uma nova lucidez política pelas "massas atrasadas" ou massas iludidas ou massas do "chopinho" ou massas de manobra de supermercados evangélicos.

É uma ilação arriscada, mas o fenômeno Barack Obama com seu bordão de "mudança" pode ter uma sutil influência nas prováveis vitórias de Gabeira e Kassab.

Há algo novo nesta disputa: estamos entendendo que a competência de uma administração pública é mais importante que ideologias, que a eficiência presente conta mais do que o velho conto-do-vigário do "futuro"; gestão, em vez de revolução.

Bush sujou o nome da América, e Obama nasce desse vexame de oito anos.

Gabeira e Kassab podem ser dois "Obamas".
Este artigo é uma adesão explícita aos dois candidatos, não porque prefiro branco ou preto, "fla ou flu", fulano ou sicrano, mas porque sou um cidadão preocupado com o delicadíssimo momento da vida brasileira, em que práticas maléficas por roubalheiras cariocas e utopias virtuais paulistanas têm de ser apontadas.

Há semelhanças entre Gabeira e Kassab. Gabeira pode desconstruir uma velha mentira carioca, e Kassab, uma recente mentira paulista. Gabeira será uma interrupção nas décadas da sordidez populista que rege o Rio, será um break nos resquícios de chaguismo, de moreirismo, de brizolismo, de garotismos e da grande anomalia que foi Cesar Maia, o prefeito que virou blog. Além da política, Gabeira é uma mudança cultural.

Em São Paulo o perigo era outro (creio que afastado): se Marta fosse eleita, a cidade congestionada de problemas urgentes seria apenas um trampolim ideológico para fortalecer o PT nas eleições de 2010, para o que restou da gangue bolchevista que o salvador Jefferson devastou. Os petistas sempre desconfiaram da democracia "burguesa", usando-a como um "meio" para chegarem a um poder enfeitado pelas jóias falsas de um socialismo imaginário. E pior: como se acham "acima" do mundo "burguês", podem cometer todas as sacanagens, justificadas pelo "ideal": acham que o mensalão foi necessário, pois assim funciona o sistema burguês, que as alianças mais sujas são inevitáveis, e têm até uma visível volúpia "revolucionária" (quase sexual) em se aliar com o mal em nome do bem.

Fingem ignorar crimes políticos, como vimos nos últimos anos. Sindicatos acabam de provocar quase uma invasão do Palácio do Governo de São Paulo, sob o comando de Paulinho da Força, usando a Polícia Civil para dissolver as acusações que pendem sobre si; Lula pode defender Marta, depois de sua gafe contra Kassab, dizendo que ela é que é vítima de preconceito, como ele foi por não ter diploma, tática tradicional do PT desde que entrou no poder: a vítima é o réu ou vice-versa.


Kassab é a vitória do útil, do concreto sobre o abstrato, porque, se o Rio foi corroído por décadas de corrupção, moleza e burrice, São Paulo é visto pelo PT como um "meio" para algo mais que não está ali. Para eles, a democracia não é um fim em si mesma. E as prefeituras também não.


Vêem com desprezo o conceito de "administração", que acham algo "menor", até meio reacionário, pois administrar é manter, preservar, em suma, "coisa de capitalistas". Kassab pensa no presente. Sua ideologia vem das coisas, das ruas, dos meios-fios, dos centros degradados pelo crack, vem dos imundos outdoors que enfeavam a cidade, veio da clareza de que São Paulo precisava ser limpo, que recapear 1.300km de estradas é mais importante que bravatas ideológicas, que pavimentar periferias é mais "de esquerda" que chorar pela sorte dos miseráveis, que subprefeitos têm de ser técnicos e competentes, em vez de "comissários do povo" pelegos enfurnados em "boquinhas" do estado.


Gabeira, eu conheço há 40 anos. E não é por isso que voto nele, pois também conheci muito vagabundo nesse tempo.

Gabeira vai além de partidos ou ideologias fixas. É uma pessoa em transe. Houve vários "gabeiras". Na ditadura, sua passagem pela luta armada teve a marca da imaginação - o caso do embaixador americano inovou métodos em toda a esquerda mundial.


Exilado, atualizou-se no exterior, percebendo outros níveis de luta política que agregavam comportamentos sociais, sexuais, ecologia, direitos humanos e a realidade do mercado. Em suma, ele entendeu que o pensamento político "dedutivo", genérico, não levava a nada, que ideologias têm de surgir dos fatos a resolver e não o contrário. Sempre teve uma visão quase "artística" da política, até o dia em que botou o dedo na cara do Severino Cavalcanti, aquele que levava bola dos garçons do restaurante da Câmara e que Lula não teve vergonha de apoiar agora.

No Brasil de hoje, pós-ideológico, emergente, as prefeituras têm um papel purificador. Podem ser as células-tronco de um país infeccionado pelo clientelismo e pelo aliancismo torpe. As prefeituras são laboratórios de democracia e imaginação criadora. Artistas e intelectuais cariocas têm de se mexer agora, botar a boca nas ruas, pois a vitória de Gabeira ainda não é certa.


Gabeira e Kassab têm de ser eleitos... Não apenas para melhorar as cidades a que presidirão, mas para haver um sopro de oxigênio na velha esquerda ou na velha direita, que, como escreveu Norberto Bobbio, se igualam pelo ódio à democracia.

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