De repente, como se brincássemos com dominós, as peças foram caindo uma após a outra e em questão de minutos o mundo ficou diferente. Da Praça Tahrir, no Cairo, a onda chegou a outros países árabes e depois, como num passe de mágica, às praças de Madrid e de várias cidades espanholas, com ressonâncias em Berlim, Paris, Roma, Viena, Bruxelas.
Como mágica não existe em política, algo ocorreu para que a mobilização decolasse. Os motivos imediatos são distintos, se compararmos os países árabes com a Espanha. No primeiro caso, protestava-se contra regimes autoritários e restrições à liberdade. No segundo, contra "tudo o que está aí", o desemprego, os políticos, a crise econômica, o cancelamento do futuro. São motivos distintos. O que os aproxima e cria a sensação de que tudo está conectado é a rapidez dos acontecimentos, a juventude dos participantes, a internet, o desejo de liberdade.
É um grito de angústia coletiva contra a vida de hoje, tanto a que transcorre sob a longa noite do autoritarismo quanto a que se ressente do encolhimento do Estado de bem-estar. Um protesto ativado por redes sociais - algo que adquiriu dimensão desconhecida: o espocar de uma palavra de ordem aqui repercute instantaneamente no resto do mundo.
Não seria correto, nem prudente, considerar os fatos como se estivessem a antecipar um ciclo revolucionário ou a fixar um tipo sustentável de ação política inovadora. Afinal, a rapidez com que sopram os ventos pode desarrumar todas as peças de um dia para outro, e é preciso dar tempo ao tempo para que novos padrões se cristalizem e alterem as formas tradicionais. O otimismo fácil e a louvação da cibermilitância não ajudam a que se entenda o que está a ocorrer.
Os "indignados" do Movimento 15M (de 15 de maio, dia em que tudo começou) querem outro tipo de política. Uma política de cidadãos, não só de políticos, militantes partidários ou grupos corporativos. Desejam atuar de forma mais livre e horizontal, mediante ações que se organizam no calor da hora e em função dos recursos e das disponibilidades dos participantes. Na manifestação atual, não há lideranças claras, partidos ou sindicatos no comando. Não se fazem assembleias à moda antiga, em que as decisões são quase sempre manipuladas. Há muita festa e determinação, bem mais que disciplina militante. Admite-se que cada um é livre para seguir o que pensa, votar como acredita ser melhor, sonhar o sonho que quiser. Não há "ódio de classe", muito menos violência. Só indignação e vontade de mudar.
As organizações políticas e sindicais de esquerda entenderam o recado e se mantiveram à margem. Afinal, o fogo dirige-se contra a "classe política" como um todo, de direita ou esquerda, que estaria sendo insensível aos apelos por democracia mais efetiva, liberdade plena nas redes, combate à corrupção e melhores condições de vida e trabalho.
"Nossos sonhos não cabem em suas urnas", dizia um dos slogans da manifestação em Valência. O movimento por certo levou a que muitos espanhóis deixassem de votar nas eleições do último dia 22, que terminaram com uma categórica vitória do Partido Popular, de centro-direita, cujas orientações são paradoxalmente contrárias ao que pedem os manifestantes. Por menor que tenha sido a influência dos "indignados", a mensagem por eles lançada soa como um alerta para a esquerda partidária e sindical, cortada pela letargia e pela dificuldade de traduzir as expectativas sociais. É um alerta também para a democracia representativa.
O 15M é como o "espírito" de uma nova esquerda, anunciando o que a velha esquerda deixou de valorizar: mais importante que "chegar ao poder" é elaborar novas maneiras de organizar a convivência e compartilhar poderes. Uma esquerda mais "cultural" e participativa, refratária a ordens unilaterais e hierarquias, que deseja uma nova economia, mas dá mais destaque à igualdade, aos direitos, às liberdades, aos indivíduos. Mostra à velha esquerda que a democracia é um valor que precisa ser praticado no Estado e no cotidiano, luta política é mais que controle de votos e recursos de poder. O 15M tenderá a perder força e talvez até desapareça, mas seu exemplo permanecerá.
Movimentos animados por redes não precisam ser prisioneiros do universo virtual. Podem agir no mundo concreto. Debatem, agitam e pressionam, mas vivem sob a constante ameaça de diluição, em decorrência da dificuldade que têm de traçar uma rota planejada ou formar um todo mais articulado. Se cada um pretende mudar as coisas a seu modo, como produzir ação coletiva?
O jornalista espanhol Jesús Gómez Gutiérrez (www.lainsgnia.org) observa que a maior ameaça às redes não vem de fora, mas de dentro delas. A conversão de todos em produtores de informação e opinião contém uma extraordinária possibilidade de democratização, mas não é imune aos riscos de distorção e manipulação: "Como podemos participar da rede, ficamos com uma ilusão de equilíbrio. Todas as vozes merecem ser ouvidas em quaisquer circunstâncias. Por isso mesmo, qualquer insensatez bem distribuída e que disponha de um bom trabalho nos bastidores seria capaz de desequilibrar as propostas de um movimento social".
Seria trágico, por exemplo, se esse ativismo se pusesse contra a democracia representativa ou se a sociedade civil por ele projetada deixasse de ter um Estado como referência. O ciberespaço e as ações antissistêmicas só podem produzir resultados políticos se não se separarem dos embates sociais concretos, das tradições enraizadas, das instituições que organizam o mundo real.
O ativismo virtual mostra-se avesso a partidos, cansado de políticos, descrente da atuação dos governos e determinado a fazer-se ouvir. Terá potência para remodelar a sociedade sem um Estado democrático e um sistema representativo? A "vida líquida" anuncia o fim dos partidos políticos tal como os conhecemos, mas também cria condições para que novas modalidades de ação cívica deem a eles uma segunda chance.
Professor titular de Teoria Política da UNESP.
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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