quinta-feira, 7 de julho de 2011

Tempos sábios, tempos tolos :: Zander Navarro

Continuaremos atacando os cânones da produção do conhecimento e propondo "alternativas", como se o resto do mundo fosse errado?

Dickens publicou "Um Conto sobre Duas Cidades" em 1859, e o primeiro parágrafo da obra se tornou célebre, evocando as contradições daqueles tempos.

Seria, segundo o cronista da aspereza vitoriana, simultaneamente, o melhor e o pior dos mundos.

Uma época em que os cidadãos teriam tudo diante de si, mas também nada perante a sua existência.

A lembrança literária é oportuna para reavivar a recente polêmica em torno do excêntrico livro adotado pelo MEC, que pretende naturalizar alguns barbarismos de linguagem. É outro sintoma das múltiplas faces de um danoso e subterrâneo processo em andamento no período contemporâneo.

Na primavera democrática, vale tudo, e qualquer aspecto tortuoso da vida social é confundido com a necessidade de contestação política e de um passado a ser banido, zerando a história.

Esse difuso comportamento, indistinto em suas origens, mas sobrepondo ação partidária, primária ideologização, visões anárquicas ou mágicas, voluntarismo político e fundamentos religiosos (provavelmente da esquerda católica), vem também contaminando gradualmente a ciência brasileira.

Desde os anos 90, prenunciando sombrios impactos futuros, têm sido rebaixados os papéis da ciência e dos cientistas. Curiosa regressão, pois ocorre quando o país ostenta uma legião de especialistas em todos os campos, com inéditos níveis de aperfeiçoamento científico.

São movimentos insidiosos, que vão corroendo as práticas de pesquisa, instaurando um populismo que se pretende científico. E são tendências graves, pois usam fundos da sociedade; muitas autoridades sancionam essa ação destrutiva, o que confunde socialmente. No limite, deseduca e distorce o valor universal da ciência.

Cito três exemplos. Primeiramente, a publicação "Transgênicos para Quem?", lançada com fanfarra em cinco cidades.

É livro que não resistiria a nenhuma análise, pois reúne um amontoado de fantasias ideológicas, sem nenhum lastro factual.

Um deplorável panfleto financiado com fundos públicos. E reacionário, por ser este um tema vencido em nossos dias.

Em segundo lugar, o recente documento da SBPC e da ABC, que pretenderia se contrapor à mudança do Código Florestal. Assinado por respeitáveis cientistas, seu arrazoado deveria iluminar a controvérsia sobre o novo Código. Mas não: o texto parece ter sido feito às pressas. Ao fim e ao cabo, uma intervenção inútil, ainda se arvorando como representativa da comunidade científica.

Finalmente, registre-se a audiência pública destinada à discussão de uma notável conquista da ciência brasileira, uma variedade transgênica da Embrapa que permite controlar uma das maiores ameaças à produção de feijão, causada por um vírus.

Um feito digno de manchetes, que nos enche de orgulho. Mas a audiência foi circense, pois ONGs e o representante do Consea, ligado à Presidência, carnavalizaram o evento, com argumentos infantis e ostensivamente anticientíficos.

Ficam as perguntas que os brasileiros precisam responder: queremos o conhecimento científico? A ciência é inimiga do povo? Continuaremos atacando os cânones da produção do conhecimento e propondo "alternativas", como se tudo aquilo feito no restante do mundo fosse errado? E o que dizer de tantos absurdos patrocinados com recursos públicos?

Quando debateremos com transparência e sem intimidação os rumos da ciência brasileira?

Zander Navarro, 59, é sociólogo e professor na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Entre 2003 e 2010 foi professor e pesquisador no Instituto de Estudos sobre o Desenvolvimento, na Inglaterra.

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

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