sábado, 10 de março de 2012

A pós-modernidade e as leis:: Merval Pereira

O estudo de dois professores americanos que mostra que a Constituição dos Estados Unidos deixou de ser um modelo na política internacional, em benefício de outros documentos, como a Constituição do Canadá ou da Lei de Direitos Humanos da África do Sul, tem provocado discussões nos meios jurídicos e chamado a atenção de constitucionalistas brasileiros para o fato de que a Constituição brasileira de 1988, tão criticada, agora parece ter as qualidades apontadas nesses novos documentos: abrange os direitos difusos, é mais específica, não deixa tanta margem a interpretações quanto a americana.

A pesquisa empreendida por David Law, da Universidade Washington, em St. Louis, e Mila Versteeg ,da Universidade de Virginia, revela, a partir de dados empíricos e estudos analíticos, a redução da influência daquela que não apenas é a primeira Constituição escrita da História da Humanidade, mas a que se encontra em vigor há mais tempo.

Em 1987, no bicentenário da Constituição americana, a revista "Time" calculou que, dos 170 países existentes então, mais de 160 escreveram seus documentos constitucionais tendo por modelo, direta ou indiretamente, a Carta americana. Hoje, 25 anos depois, o modelo americano parece estar perdendo a atração, diz o estudo de Law e Mila, que será publicado em junho pela "Revista de Direito" da Universidade de Nova York.

Os dois classificaram e estudaram 729 constituições adotadas por 188 países, de 1946 a 2006, e constataram a perda de prestígio, por razões que vão desde ser a Constituição americana curta e superficial até o fato de garantir poucos direitos específicos, especialmente por ser um documento de 1787 que não abrange questões hoje fundamentais para as sociedades pós-modernas.

Mila me disse por e-mail que estudou com algum detalhamento a Constituição brasileira, que faz parte de sua base de dados sobre o assunto.

Utilizando o mesmo critério de análise que usaram para a Constituição americana, os professores se debruçaram sobre a Constituição brasileira, e Mila diz que a Constituinte de 1988 fez com que momentaneamente nossa Carta parecesse menos semelhante às demais.

Mas, nos anos seguintes, as constituições mundiais se tornaram mais parecidas com a brasileira, tendo inclusive sido identificada uma tendência semelhante com a Carta do Canadá de 1983.

Esse fato sugere, diz Mila, que a brasileira pode de fato ter se tornado modelo para outras mais recentes, embora seja difícil traçar linha direta de causalidade nesses casos.

Dois constitucionalistas brasileiros, Luís Roberto Barroso, professor titular de Direito Constitucional da Uerj, e Gustavo Binenbojm, professor adjunto da Faculdade de Direito da Uerj, analisaram essa relativa perda de influência da Carta americana e a proeminência de documentos constitucionais modernos que tratam mais especificamente de direitos difusos e garantias individuais dos cidadãos.

Barroso concorda com a tese e considera que a Corte Constitucional alemã, que teve papel decisivo no reerguimento moral germânico, foi a primeira grande concorrente da Suprema Corte americana.

Os aliados, vencedores da Segunda Guerra, impuseram à Alemanha Ocidental uma Constituição democrática da qual constava um rol amplo de direitos fundamentais (maior e mais explícito do que o da Constituição Americana, ressalta Barroso) e, sobretudo, a previsão de criação de um tribunal constitucional cujo papel era controlar os excessos e desvios do processo político e proteger os direitos fundamentais.

Interpretando o princípio da dignidade da pessoa humana e outras cláusulas constitucionais, o Tribunal Constitucional Federal alemão foi granjeando prestígio nacional e internacional, aproximando-se paulatinamente do prestígio desfrutado pela Suprema Corte Americana, atesta.

Barroso destaca também que a Suprema Corte do Canadá começou a ganhar expressão a partir da aprovação da Carta de Direitos e Liberdades, de 1982. "Desde então, é possível contabilizar inúmeras decisões importantes, proferidas por juízes intelectualmente qualificados e com menos viés político do que os da Suprema Corte Americana", diz Barroso.

Para ele, a Corte canadense tem um conjunto de decisões muito importantes envolvendo aborto, descriminalização de drogas, suicídio assistido, criminalização da pornografia infantil, ilegitimidade de manifestações antissemitas.

Barroso diz que não seria correto pôr a Corte Constitucional sul-africana como uma influência mundial. Algumas decisões da Corte, porém, em matéria de direitos sociais - acesso a habitação e água - tornaram-se emblemáticas.

Gustavo Binenbojm concorda em que há, no meio acadêmico internacional, voz corrente que aponta para o declínio da outrora mítica e influente Constituição dos Estados Unidos da América como modelo para as democracias constitucionais mundo afora.

Os motivos mais evidentes, segundo ele, têm a ver com circunstâncias históricas. Em vigor há 225 anos e tendo sido emendada apenas 27 vezes, o texto da Carta americana, em sua linguagem e seu espírito, já exibe os sinais da passagem do tempo, diz Binenbojm.

"Em alguns casos, a definição de alguns direitos e institutos jurídicos é simplesmente antiquada, merecendo atualização", sinaliza, ressaltando que há trechos extremamente lacônicos e vagos, gerando incerteza e insegurança jurídica.

Em outros casos, o problema é mesmo de concepção filosófica, claramente datada e dirigida a um mundo que não mais existe. "Disposições como a que assegura o direito de guardar e carregar armas, que tem similar apenas no México e na Guatemala, parecem fora de moda". Além disso, ampla gama de novos direitos, como os atinentes a minorias de gênero, orientação sexual ou origem étnica, ao meio ambiente e aos consumidores, para citar alguns exemplos, não foram e nem poderiam ter sido originalmente contemplados, mas tampouco foram acrescentados por via de emendas", lembra Binenbojm.

Outra dificuldade apresentada pela Constituição americana é seu complexo e dificultoso processo de reforma. "Assim, outras Constituições ou declarações de direitos, mais atualizadas em termos jurídico-ideológicos e vernaculares, acabaram por exercer o papel paradigmático antes desempenhado pela Constituição de 1787", analisa Binenbojm.

(Amanhã, a experiência brasileira)

FONTE: O GLOBO

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