• Quase todos os problemas que levantamos acabam sendo engolfados pelo capitalismo
- O Globo / Segundo Caderno
Foi lançada nos EUA a primeira marca global de maconha: a Marley. É uma homenagem a Bob Marley. Os empresários prometem honrar Marley com um produto à altura de seu passado e talento. É um caminho diferente do uruguaio. Em Montevidéu, senti que a posição do governo era a de controlar o comércio. Algo como os suecos fazem com o álcool, distribuindo-o em armazéns estatais. Sinto saudade do velho deputado mineiro Elias Murad. Ele é contra a legalização e fizemos centenas de debates sobre o tema, estimulados pelo governo que queria sentir o pulso da sociedade.
Tanto discutimos que ficamos amigos. Se Elias faltasse a um debate, seria capaz de substitui-lo com todos os seus argumentos. Da mesma forma, ele sabia de cor o meu discurso. Lembro-me do período com certa ironia, por acreditar, naquela época, que debates como os nossos iriam abrir caminho para uma decisão nacional. Preocupado com a produção do café em Minas, Elias fez um projeto determinando uso do café na merenda escolar. A pequena concessão à cafeína foi a única brecha que encontrei na sua cruzada antidroga.
A cafeína na virada do século XX ainda era vista com suspeição. A própria Coca-Cola só conseguiu superar as reservas, quando num genial golpe de marketing associou seu produto ao Papai Noel. Olho para trás sorrindo por algumas razões pessoais. Quase todos os problemas que levantamos acabam sendo engolfados pelo capitalismo. Na década dos 60, rasgaram-se muitos sutiãs, mas o que estava destinado a revolucionar o sexo no planeta era a pílula anticoncepcional.
De novo, no início da década dos 80, toda a pregação sobre a política do corpo também acabou absorvida pelo capitalismo, através de centenas de academias de ginástica, produtos esportivos, complementos alimentares, cirurgias plásticas e tantas coisas mais. O próximo passo é a conquista do cérebro com implantes que ampliem a inteligência e uma entrada de USB na nossa nuca.
A maconha, depois de anos de proibição, também cai no circuito capitalista. A legalização em sucessivos estados americanos acabou propiciando a exploração industrial. O próprio milionário Warren Buffet mostrou-se disposto investir na cannabis. O financista George Soros financiou uma campanha pela maconha legal, na Califórnia. A maioria do povo brasileiro é contra a legalização. Disso, Elias e eu, sabemos bem. Recentemente, uma pesquisa indicou que a maioria é contra até o uso medicinal, o que não deveria impedir o curso da legalização, nesse caso particular.
Se perguntássemos à maioria se é contra o uso medicinal da morfina, talvez respondesse sim, exceto aqueles que sentiram muita dor ou viram entes queridos sofrendo. Tenho grande respeito pelos que defendem a proibição da maconha e, em certos casos, como o do velho Elias, mais que respeito, admiração. No entanto, as coisas tornam-se mais complexas com o tempo. A Marley será exportada para países que permitem o uso. Provavelmente chegará ao Uruguai. O Paraguai já exporta maconha ilegal tanto para o Brasil como para os próprios uruguaios.
O cenário dos próximos anos indica que a Marley pode chegar ao Brasil, escondida, como chegam tantos produtos legais fugindo dos impostos. Pode continuar chegando via Paraguai de forma ilegal como chega hoje, ou mesmo surgir numa versão falsificada, como tantas marcas de uísque.
A maconha legal abre também o campo para a produção do cânhamo, uma canabis com baixo teor de THC, usada hoje em centenas de aplicações industriais. Resistir à legalização além da posição moral ganhará os contornos românticos da resistência à abertura de um novo campo ao capitalismo.
No fim do século passado, escrevi um livro sobre a maconha. É apenas um rascunho. O processo evoluiu tanto que se me encontrasse hoje com Elias iria propor um café bem forte para avaliar o quadro. Gostaria de escrever a história da maconha, como acho que deveria ser escrita a história da cafeína e da nicotina que, combinadas, deram um grande impulso à fase industrial. Um cafezinho e um cigarro sempre foram um estímulo ao trabalho. No caso do cigarro, com um grande preço em vidas humanas e recursos materiais. A ignorância é uma droga pesada. Embora existam muitos livros, o impacto dessas substâncias na história humana ainda precisa estudos detalhados. A cocaína, por exemplo, é elemento vital para a compreensão da trajetória da Colômbia.
Mas o tempo passou, outros temas capturaram minha atenção. A marcha do capitalismo não depende tanto de minha energia intelectual. Toda vez que escrevo sobre maconha, lembro-me de Elias Murad que, no passado, me deu um livro sobre a toxicidade silenciosa da erva, com uma carinhosa dedicatória. Os males que a maconha traz ainda são discutíveis. Elias talvez se recorde de meu esforço para convergir: a maconha mata, certamente, se um pacote de cinco quilos cair do décimo andar na cabeça de quem passa.
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