domingo, 15 de maio de 2016

Os heróis que não temos - Luiz Sérgio Henriques*

- O Estado de S. Paulo

O heroísmo costuma aparecer em cena nos momentos de transição, associado, em geral, a homens de comportamento reto e nítido. Os que viveram o final do regime militar certamente têm na memória a figura de Ulysses Guimarães rompendo o cerco de cães e baionetas, em 1978, e bradando civicamente: “Respeitem o presidente da oposição!”. A transição já se anunciara, a anistia não tardaria e o País em breve iria reencontrar-se com sua vocação democrática, tal como inscrita no texto constitucional dez anos mais adiante.

Mas não só inteiriços heróis positivos surgem nas transições. Há outros mais ambíguos, feitos de luz e sombra, com um pé no passado, outro no futuro, como aqueles que Hans Magnus Enzensberger chamou, em 1989, de “heróis da retirada”.

A partir desse tipo, personificado, entre outros, em Gorbachev, Javier Cercas (Anatomia de um Instante, Globo, 2012) esmiuçou a ocupação violenta do Parlamento espanhol em fevereiro de 1981. Um desses “heróis da retirada”, Adolfo Suárez, ex-quadro franquista, manteve a altivez no instante do golpe, ao lado de dois outros deputados, um dos quais o então dirigente eurocomunista Santiago Carrillo.

E assim, com Enzensberger e Cercas, nos vemos lançados à atualidade brasileira, ainda que de modo paradoxal. O paradoxo inicial consiste no fato de que não chegamos a ter, desde 2003, um regime de poder inteiramente fora ou acima das leis, de modo que agora estivéssemos diante de um verdadeiro problema de transição, tal como Espanha e Brasil após as respectivas ditaduras. Bem verdade que a esquerda petista, pelo uso torto de velhas categorias ou por contaminação dos vizinhos populismos, ou ainda por mero oportunismo, aprendeu a enfrentar cada rodada eleitoral com recursos morais e materiais nem sempre de origem acima de qualquer suspeita.

Em todos estes anos, a mera perspectiva de perder eleições, fato trivial numa democracia, pareceu ao lulopetismo algo próximo de uma catástrofe: o inimigo, a “direita”, não podia deixar de encarnar, invariavelmente, um retrocesso civilizatório. A proclamada revolução social pacífica, empreendida pelo petismo, ao retirar milhões de pessoas da pobreza e diminuir as distâncias sociais, teria deixado em seu rastro uma classe média ressentida e temerosa. E neste pântano moral é que a “direita” iria buscar combustível para a intolerância e o ódio de classe, que não cabia admitir sob pena de faltar ao mandato da História.

A desmoralização do inimigo haveria de ser sustentada por dinheiro e recursos só possíveis a partir de uma estratégia de ocupação agressiva dos aparelhos de poder – e nisso residia, não por acaso, o risco de eventual consolidação de um regime “revolucionário institucional”, à moda mexicana. Da boca para fora, nosso arremedo de PRI defendia o financiamento público das ações partidárias; na prática, um inédito mecanismo vertical e centralizado de arrecadação legal e ilegal mudava os termos da competição eleitoral e da conformação do poder.

Desmontar tal mecanismo de apropriação do Estado e de suas empresas, levado a cabo por uma esquerda de inclinação autoritária e procedimentos velhíssimos, está entre as razões pelas quais quase se chega a imaginar como de transição o governo Temer. E o impeachment, traumático como é, mas plenamente constitucional, em circunstâncias menos irracionais poderia ser o momento inicial de regeneração de um PT menor e aggiornato. Para isso, aliás, servem as temporadas na oposição, que, mesmo duras e difíceis, não são nem devem ser vividas como uma estação no inferno.

Governa-se também a partir da oposição, contribui-se para mudar relações de força mesmo fora do poder, compreendendo melhor os limites postos pela sociedade a uma ação política que se mostrou voluntarista e, muitas vezes, além da legalidade.

Para tanto conviria a todos que, no PT ou em outros grupos de esquerda, se fizesse ouvir não o grito estridente e inócuo contra o “golpe constitucional” ou a ameaça de uma oposição do tipo terra arrasada que marcou negativamente a história daquele partido. Seria benéfico para a democracia que, a despeito de justificadas expectativas ruins, por lá surgissem os tais “heróis da retirada”, isto é, gente dotada de autocrítica e capaz de sugerir futuros cursos de ação distintos destes que aproximaram perigosamente o petismo dos populismos autoritários. Tais heróis, de fato, propõem-se a renovar a cultura de um partido e suas relações com os demais atores e instituições – e claramente não são recrutáveis em “exércitos” informais.

Em poucas situações como agora temos tanto direito ao pessimismo da inteligência. Mesmo acossado intelectual e politicamente, o petismo aferra-se a uma narrativa em que, como norma, detém a superioridade moral – e isso quando praticamente todo o grupo dirigente, a começar pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, se encontra às voltas com um vasto conjunto de acusações raras vezes visto em nossa vida política. E num contexto que põe em risco a quase totalidade do sistema partidário – o coração da democracia –, a tal ponto enredado em esquemas de cooptação que, salvo melhor juízo, nem sequer a sombra de herói positivo parece surgir de veneráveis partidos como o PMDB.

Alegar que se trata de ação concertada da (frágil) oposição, da imprensa monopolizada e até de setores do aparelho de Estado, mancomunados numa “nova forma de golpe”, pode tranquilizar consciências simples. Pior ainda, pode insuflar uma espécie de subversivismo elementar que paralise, na oposição, partidos ou frentes de esquerda sem capacidade efetiva de liderar um conjunto de forças e mesmo um país, numa perspectiva socialmente justa. Previsivelmente, tal alegação nem de longe reporá a esquerda política em posição dirigente nos próximos (muitos) anos, uma faceta nada desprezível da herança maldita que ora nos desorienta.

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*Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta e é um dos organizadores das 'obras' de Gramsci no Brasil - site: www.gramsci.org

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