- O Globo
Desembargador que tentou humilhar o guarda civil cometeu de uma vez só todos os abusos que demonstram sua postura patética, típica do ‘sabe com que está falando?’
A pandemia da Covid-19 está deixando exposta a enorme desigualdade que perpassa a sociedade brasileira, e estimulando comportamentos execráveis como o do desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo de sobrenome quatrocentão Eduardo Almeida Prado Rocha Siqueira, que humilhou um agente da Guarda Civil de Santos por se recusar a usar máscara.
Vários casos como esse têm acontecido nos últimos dias, revelando que a época anacrônica do “você sabe com quem está falando? ” continua prevalecendo na triste pós-modernidade brasileira. Devemos ao sociólogo Roberto Da Matta em seu livro “Carnavais, malandros e heróis” a dissecação dessa frase emblemática, que define nossa sociedade até hoje.
Diante dos casos recentes, como o daquela senhora que respondeu a um fiscal que seu marido não era cidadão, mas “engenheiro civil, melhor que você”, Roberto da Matta confirma sinais de que a cultura brasileira “tem alergia à igualdade, e a máscara iguala as pessoas”.
Uma pessoa que considera ofensivo ser chamada de “cidadão” mostra bem em que ponto estamos no nosso desenvolvimento como sociedade. A senhora em questão disse que sentiu um tom de ironia na voz do guarda, quando a intenção era mostrar respeito mas, ao mesmo tempo, definir a limitação do indivíduo no convívio social.
No Brasil, analisa Roberto da Matta, você vive como pessoa pública mesmo quando está na fila do banco. Ou você se considera merecedor de furar a fila, ou o gerente, reconhecendo-o, lhe chama. O anonimato da rua, que deveria reger nossas relações sociais, é superado pelo “sabe com quem está falando ?”, e a máscara dá uma sensação de igualdade que incomoda os acostumados a uma relação de subordinação, hierarquizada.
Há outras interpretações relacionadas à recusa do uso da máscara, que se encaixam bem no perfil do presidente Bolsonaro, um dos primeiros a reagir contra a obrigatoriedade do uso da máscara, dando péssimo exemplo de comportamento social.
Quando disse que deveríamos enfrentar a pandemia “como homens”, Bolsonaro estava confirmando uma dessas interpretações, que indicam que psicologicamente os que se recusam a usar máscara a consideram um sinal de fraqueza, sem levar em conta que a pandemia não escolhe vítimas. São acintosamente egoístas.
Afinal, o uso de máscaras protege quem a usa, mas, sobretudo, os que estiverem em seu entorno. A maior prova de que o uso da máscara previne a Covid-19, o que, de resto, já está comprovado por diversas pesquisas científicas, é o número de funcionários do Palácio do Planalto que foram contaminados.
Nada menos que 128 servidores foram diagnosticados com a Covid-19, sendo que 36 estão afastados no momento, depois que o presidente foi diagnosticado com a doença contagiosa. Também ontem o novo ministro da Educação, Milton Ribeiro, anunciou que testou positivo para a Covid-19, sendo o quarto ministro a ser infectado.
O desembargador que tentou humilhar o guarda civil e agora está sendo investigado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) cometeu de uma vez só todos os abusos que demonstram sua postura patética típica do "sabe com quem está falando?”. Citou o nome do secretário de segurança de Santos, Sérgio Del Bel e telefonou para ele para demonstrar intimidade. Chamou o guarda de analfabeto. Falou ridiculamente em francês para mostrar-se superior ao guarda.
O secretário Del Bel atendeu a chamada, mas, diante do acontecido, disse que não conhece o desembargador. Esse é outro detalhe que denota a hierarquização da nossa sociedade. O secretário de Segurança atendeu porque sabe que quem tem seu celular deve ser importante. Se fosse um cidadão qualquer que tivesse descoberto o número do celular, a conversa não demoraria um segundo.
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