Músico projeta a volta do Samba do Trabalhador contando com bom senso do público para manter distância e sob rígidas normas sanitárias: ‘um copo de cerveja numa mão e um de álcool gel na outra’
Maria Fortuna | O Globo
Já são 30 músicas compostas por Moacyr Luz nesta quarentena — algumas inspiradas pelo coronavírus. Há parcerias com Fagner, Jorge Aragão, Sombrinha, Toninho Geraes entre outros. Há também 12 canções inéditas que ele acaba de gravar no disco de Douglas Lemos, nome que, aos 27 anos, desponta entre os novos talentos do samba.
Toda essa urgência em compor em meio à pandemia tem a ver com o medo de morrer que se abateu recentemente sobre Moa, de 62 anos. Ele ainda não se recuperou da perda do parceiro Aldir Blanc, em maio — com ele, aliás, tem cinco parcerias inéditas (ouça a última delas, “Palácio de lágrimas”, abaixo).
Mas o comandante do Samba do Trabalhador, que acontece há 15 anos no Renascença Clube, no Andaraí, espanta o baixo a astral e manda avisar: assim que for seguro, a roda que é patrimônio cultural do Rio vai voltar. É possível que seja já no mês que vem, quando está previsto (dia 14) o início da 6ª fase do Plano de Retomada da prefeitura. Ela inclui a liberação de shows com 1/3 da capacidade total da casa, entre várias outras normas. Tudo ainda depende, no entanto, da curva da Covid-19. O que é certo, por ora, é a live que o grupo faz no próximo dia 3, diretamente do Rena. Vai dar para matar um tiquinho da saudade.
Quais serão os cuidados para o que Samba do Trabalhador volte com segurança e qual a previsão do retorno?
Acompanho a flexibilização no Rio e rezo para dar certo. Porque ninguém tem condições psicológicas de encarar outro período de isolamento. É muito sofrido. Dia 3, faremos essa live no Renascença sem público. Vamos voltar em agosto. Como? Ainda é uma incógnita. Teremos que higienizar mesas e cadeiras do tempo todo, usar copo de plástico e máscara. Vai ser um copo de cerveja numa mão e um de álcool gel na outra. Se antes entravam 1.200 pessoas, agora serão 300. O mais difícil vai ser o bom senso. Como controlar as pessoas? Cansei de levar cerveja nas costas de gente colada atrás de mim enquanto eu tocava. Não consigo imaginar um samba sem aglomeração. É como um gol sem abraço. Teremos que conviver com algo fora do nosso status quo.
E em que fase da quarentena você está?
Vivendo as consequências de uma insônia absurda. Não consigo voltar à minha rotina de trabalhar de manhã. A imagem que faço da quarentena nesse momento é aquela de quando uma pessoa compra um sofá e não tira o plástico para não sujar. Um dia, cai café fora do plástico, e a pessoa relaxa. A gente começa a sair de casa, mas ainda muito assustado.
A vida não está fácil, mas a inspiração anda fluindo a ponto de você compor 30 músicas...
Estava saindo tudo tão forte e intenso que comecei a me perguntar por que tinha tanta pressa. Cheguei a fazer três músicas no mesmo dia, com três parceiros diferentes. Depois de 90 dias trancado em casa, corri ao estúdio para gravar o disco com o Douglas.
Fiz o samba da Paraíso do Tuiuti com Claudio Russo para um carnaval que nem sabemos se vai acontecer... Já fiquei tão frustrado com meus shows cancelados em Paris, Toulouse, Porto, Lisboa... O Samba do Trabalhador tinha acabado de lançar um disco e aí veio essa essa “aposentadoria”...
Sua urgência em compor tem a ver com o medo de morrer, já que perdeu amigos como Aldir Blanc? Como tem sido o luto?
É medo da morte, sim. Como Noel fez tanta música aos 20 e poucos anos? Estou com 62! Compor com os mais novos dá a sensação de longevidade, sobrevida. Fiz disco com o Nego Álvaro (“Nego Álvaro canta Sereno e Moacyr Luz”) foi indicado ao Grammy Latino (2019). Esses meninos levam minha música adiante.
Sobre o Aldir, ainda não caiu a ficha. Conversávamos sobre coisas engraçadas que aconteciam na vida das pessoas, tipo “fulano bebeu tanto que caiu”. Vejo algo assim e me pego telefonando para ele. Achava que não morreria nunca. Brinquei que a quarentena não fazia diferença para ele: não saía de casa mesmo...
Como está a saúde? Tem bebido muito?
As taxas explodiram, a perna inchou. Gosto do que não podia gostar: vinho, comidas pesadas. Meu projeto de vida é não interromper essa rotina (risos). Quando tive que fazer regime radical, me sentia uma árvore: todo mundo passando, comendo e bebendo, e eu, ali, parado.
Troquei cerveja e cachaça pelo vinho em 2008. Tinha feito um show com Luiz Carlos da Vila e sugeri que ficássemos mais um pouco em São Paulo. Nós dois tínhamos exames barra pesada no Rio, então, disse: “Vai dar problema, vamos tomar um negócio antes que seja tarde demais”. Na volta, ele foi internado e não voltou (se emociona).
Dias depois, no lançamento do meu livro (sobre o botequim Pirajá) na Folha Seca, tomei cerveja e duas garrafas de cachaça. O médico disse que eu estava fodido. Aí parei com tudo, fiquei quatro meses no peixe na água e sal. Depois, fui para o vinho. Brinco com Zeca (Pagodinho) que o médico disse que eu podia uma taça, e entendi uma caixa.
Como a falta dos botequins impacta a sua música?
Na arte, vivemos do inconsciente, que guarda o belo cabeça da gente. Isso é construído na rua, na relação com as pessoas. Vivo de observar. Estou, aos poucos, retomando. Está todo mundo louco para voltar a fazer show, viajar. Tem uma hora que não dá mais. Eu tenho direito autoral, mas e quem vive de fazer show?
Na quarenta, você começou, no YouTube, a série “O segredo da música”, em que conta a história das composições. Pode contar a melhor delas?
Havia reuniões com compositores e intérpretes na minha casa, na Tijuca. Era Beth Carvalho, Leny Andrade, Leila Pinheiro, Aldir Blanc... Eu sempre cantava “Saudade da Guanabara”, que tinha outra letra. Até que Beth me disse: “Gosto tanto dessa música, mas não entendo nada da a letra. Tanto parceiro aí... Por que você não pede a um deles para fazer outra?”. Dias depois, Paulo César Pinheiro passou lá em casa e chamei o Aldir, que morava no quarto andar e foi buscar mais cerveja. Voltou apontando a troncha cortina da minha casa e falou: “Joga isso fora que a gente acabou de fazer um sucesso e vai comprar outra”. Paulinho ficou nervoso e foi embora. Duas horas depois, liga com a segunda parte da música. Beth foi lá pra casa e ficamos cantando a música até de manhã. Ela estava finalizando um disco, ligou para o maestro, e a canção batizou o álbum.
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