O Estado de S. Paulo
Cidadãos que valorizam a democracia
precisam não só combater as estripulias autoritárias dos iliberais, mas atuar
para defender o sistema democrático.
De uns anos para cá, o “iliberalismo” tem
ocupado um lugar de destaque nas explicações do mundo em que vivemos.
Boa parte dessa atenção decorre da
multiplicação de governos que giram em torno de autocratas populistas – mais
violentos e autoritários ou menos –, que menosprezam regras, hábitos e
procedimentos dos sistemas democráticos. São governantes que chegaram ao poder
valendo-se das instituições democráticas (eleições, liberdade de expressão e
associação, separação dos poderes) e que governam minando aquilo de que se
beneficiaram. Organizam sistemas antidemocráticos paralelos a partir dos quais
atacam os sistemas instituídos, abalam o que está estabelecido, reprimem
adversários e mobilizam seguidores, sempre que possível fanatizando-os.
Tais governos governam muito pouco, ou até mesmo não governam, deixando as coisas do Estado em modo inercial. O objetivo é converter o governo numa instância de mando e poder pessoal. Atos de governo não seguem planos técnicos e são quase sempre apresentados como derivados da generosidade e da largueza de visão do chefe, cuja vontade – em muitos casos marcada pela impulsividade e pelo improviso – é tratada como se contivesse um mapa seguro para a “verdade”. A sustentação é obtida por métodos conhecidos: negociações espúrias, produção incessante de desinformação, criação de inimigos imaginários (o comunismo, o globalismo, o marxismo cultural), manipulação das redes sociais, fomento aos discursos de ódio e intimidação, ameaças. Fatos, dados e evidências são ignorados ou mencionados com sinal invertido. A intenção é turvar a compreensão da realidade, gerar medo e confusão.
A implicância de Jair Bolsonaro com as
urnas eletrônicas e seus seguidos atritos com o Poder Judiciário são
emblemáticos dessa situação, assim como ocorreu com seu comportamento durante o
período agudo da pandemia.
Ocorre que o iliberalismo não evolui sem
topar com pedras no caminho ou sem enfrentar resistências. Ele nasce das
circunstâncias que estão a transformar as bases da sociedade moderna e os
sistemas políticos, mas encontra precisamente nessa transformação os fatores
que o desafiam e o exaurem.
O iliberalismo colide, antes de tudo, com o
desejo de liberdade e autonomia, que, entre outras coisas, não é propriamente
favorável à existência de patronos ou tutores na relação dos cidadãos com o
Estado. É bem verdade que esse desejo é embaralhado pela sensação de insegurança
e desproteção que atinge os cidadãos em sua vida cotidiana. Embora impulsione o
populismo autoritário, essa sensação não é suficiente para desarmar a ideia de
que cada um deve pensar com a própria cabeça, lutar por seus direitos e suas
necessidades. Tiranos populistas são incômodos nessa paisagem. Sua reprodução
carrega o signo do drama, do atraso, da tragédia.
Em segundo lugar, o iliberalismo agride a
democracia, especialmente em sua versão cívica, substantiva, que inclui formas
alargadas de participação política, democratização social, respeito a regras
justas e a direitos. Não há como ser autoritário num ambiente no qual a
democracia vigora como valor, expressão de algo que se aprecia. O autoritarismo
pode obter adesões durante algum tempo, sobretudo se for hábil em se disfarçar
e fazer manobras de ressignificação conceitual. Em algum momento, porém, as
máscaras cairão e as chances de reprodução diminuirão.
A crise dos sistemas iliberais também pode
derivar de sua baixa flexibilidade, de sua dificuldade de responder com
criatividade e presteza às demandas e expectativas da sociedade. O iliberalismo
tem poucos recursos adaptativos e tende a pagar preço alto ao imobilismo, mesmo
que tentando apresentar o “não fazer nada” como cálculo político, astúcia do chefe
ou heranças malditas. Governos iliberais desprezam a inteligência e a cultura,
costumam ser pobres de quadros técnicos e administrativos. Atraem colaboradores
que aceitam, sem dilemas morais, o papel de subalternos silentes do chefe. A
formação de equipes de baixo nível e de entourages de
aduladores torna-se, com o tempo, um fator adicional de desgaste e exaustão.
O iliberalismo não caiu do céu nem foi
inventado pela “genialidade” deste ou daquele líder. É uma das traduções
possíveis do mundo tresloucado em que vivemos, deste “tempo de governantes
incidentais”, como bem definiu o cientista político Sérgio Abranches.
Sociedades capitalistas complexas, que giram como bólidos fora de controle e
não conseguem produzir vida coletiva sustentável, porque tudo está em transição
e em mudança acelerada, precisam de tempo para encontrar os eixos que as
estabilizem. Os iliberais trabalham enquanto esses eixos não são encontrados.
Os cidadãos que valorizam a democracia
precisam, por isso, não somente combater as estripulias autoritárias dos
iliberais, mas atuar para defender o sistema democrático, corrigindo suas
falhas e criando condições para que o pluralismo político e a diversidade
ideológica não o paralisem.
*Professor titular de teoria política da Unesp
2 comentários:
Corretíssimo.
Grande, que texto, uma realidade profunda, de tal forma me comoveu que agora sou muito mais robusto a minha crítica.
Postar um comentário