segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Heloisa Murgel Starling* - De noviço a revolucionário

Folha de S. Paulo / Ilustríssima

Frei Caneca foi o principal pensador político do processo de emancipação do Brasil que se desenhou a partir de Pernambuco, saltando do convento para as trincheiras na Revolução de 1817 e na Confederação do Equador, de 1824. Em seus escritos e atos práticos, associou a ideia de pátria à noção de virtude civil em relação à terra que se habita, defendeu uma Constituição que abarcasse uma lista de direitos e se opôs ao despotismo de dom Pedro, o que o levou à morte por fuzilamento.

A cabeleira amarelo-avermelhada era inconfundível. "Sou ruivo", disparou frei Caneca, em meio à polêmica que travou com o redator do jornal A Arara Pernambucana em junho de 1823, para confirmar, de uma vez por todas, a ascendência paterna portuguesa —aliás, a avó, Francisca Alexandrina, ganhara o apelido de Ruibaca, no Bairro Alto, em Lisboa, em consequência da ruividão.

A origem materna, ao contrário, estava entroncada desde meados do século 17, entre os indígenas e os escravizados africanos. Principiava na figura de sua trisavó, que ele reinventou com o nome Maria das Estrelas: "Pois é ponto de fé pia que essa Maria das Estrelas, minha trisavó, havia de ser alguma Tapuia, Potiguari, Tupinambá, senhora de muito mingau, tipoias, aipim e macaxeira; e também se foi alguma rainha Ginga, nenhum mal me fez; já está à porta o tempo de muito nos honrarmos do sangue africano".

O que se conhece sobre as origens de frei Caneca deve-se a ele mesmo, registrou o historiador Evaldo Cabral de Mello na introdução do volume que reúne seus principais escritos políticos. Difícil saber ao certo quando a investigação genealógica teve início, mas ela não tinha nada de inofensivo; servia bem ao debate público.

Desenrascar o enredo de sua ascendência talvez tenha lhe fornecido, ainda em 1822, algumas das respostas de que precisava para concretizar as bases de um projeto alternativo ao processo de Independência como empresado no Rio de Janeiro: federalista, voltado para a garantia do princípio do autogoverno provincial, ancorado na ideia de pátria e na figura de um personagem de inspiração republicana —o "cidadão patriota".

No dia 6 de março de 1817, antes mesmo de se processar a ruptura com Lisboa, a República foi proclamada na cidade do Recife. A Revolução de 1817 contestou o projeto de Império brasileiro encabeçado pela Corte instalada no Rio e abriu o ciclo revolucionário da Independência.

Em julho de 1824, a Confederação do Equador reafirmou a autonomia de Pernambuco, reimplantou a República, conjurou nova revolução e convidou os vizinhos do Norte a aderirem: Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Alagoas, Sergipe, Paraíba.

Foi "a outra independência", nomeou Evaldo em seu livro, e frei Caneca era seu mais importante pensador político. A "pátria do cidadão não é só o lugar em que ele nasceu como também aquele em que ele fez sua morada e fixou o estabelecimento", escreveu em sua "Dissertação sobre o que se deve entender por pátria do cidadão e deveres deste para com a mesma pátria", logo nos primeiros dias de 1822.

Em uma província disposta a conceber e liderar um projeto de soberania para escapar ao controle tanto de Lisboa quanto do Rio e que sustentava uma longa história de hostilidade contra os reinóis, ele estava propondo uma solução inédita em termos de independência para o então Reino do Brasil: articulou a ideia de pátria, a terra onde se nasce, à cidade onde se compartilha uma vida em comum.

Associar pátria à noção de virtude civil permitiu-lhe convocar a sociedade pernambucana para um pacto histórico. "Patriota" identificava uma pessoa capaz de admitir ser possível compatibilizar a existência de um território nativo e ancestral com o reconhecimento de que o convívio entre os homens demanda a construção de um modo próprio de viver livre em uma cultura comum.

Como seria típico de seus escritos, o argumento exige uma tomada de posição imediata e concreta diante da conjuntura política: os portugueses domiciliados em Pernambuco e empenhados em seu progresso, onde tinham família e ofício, eram tão patriotas quanto os naturais da terra —não cabia antagonismo entre eles.

Também deixava claro que isso teria consequências frente ao que estava por vir: Pernambuco era a pátria de direito da comunidade reinol, o lugar onde se estabeleceram e por onde deveriam optar, em caso de conflito com Lisboa ou com o Rio.

Joaquim do Amor Divino Rabello, o frei Caneca, nasceu em 1779, no Recife. Era o primogênito de Francisca Alexandrina de Siqueira e Domingos da Silva Rabelo, um tanoeiro que fabricava e consertava pipas, barris, tinas e, naturalmente, canecas, que o filho iria adotar ao nome quando se ordenou frade carmelita, em 1801, com apenas 22 anos. Como a Ordem do Carmo oferecia ensino aos filhos de imigrantes portugueses e a carreira eclesiástica seria uma via segura de promoção social, Joaquim se fez noviço.

Era um leitor voraz que transitava entre a matemática e a geometria, a teoria literária e a retórica, a história e o pensamento político. Tornou-se um leitor público, anotou o historiador Denis Bernardes, partilhando e espalhando suas leituras e ideias nas salas de aula —na condição de professor de geometria, retórica e filosofia—, no púlpito da igreja e, naturalmente, nas reuniões e assembleias que se repetiam com intensidade cada vez maior no Recife, sobretudo a partir da Revolução de 1817.

Sua formação política, com as leituras republicanas, foi resultado das disciplinas que cursou no Seminário de Nossa Senhora da Graça, em Olinda, a instituição de ensino mais inovadora do Brasil no período colonial e polo irradiador das ideias do Iluminismo no Nordeste.

A frequência com que comparecia às reuniões na Academia do Paraíso, por sua vez, facultou-lhe o trânsito entre a palavra e a agitação revolucionária. Instalada no hospital do Paraíso, a academia se organizava como círculo de sociabilidade intelectual e intervenção política, além de centro de difusão de ideias republicanas e núcleo de conspiração anterior à Revolução de 1817.

A carreira eclesiástica deslanchou bem. O problema eram os interesses de frei Caneca que ultrapassavam, e muito, os muros do convento do Carmo. Havia a relação amorosa que manteve com uma mulher que nunca nomeou e com quem teve uma filha. Às vésperas de sua execução, em 1825, escreveu uns versos que ficaram famosos, dedicados à mulher que arrebatou seu coração e a quem se dirigia de acordo com o protocolo árcade, bem à moda de Tomás Antônio Gonzaga: "Entre Marília e a Pátria/ coloquei meu coração:/ A Pátria roubou-m’o todo;/ Marília que chore em vão".

E havia a política. Na Revolução de 1817, frei Caneca é um insurgente. Conclamou a população a se levantar contra o domínio português, animou grupos de pessoas em exercícios de tiro praticados no quintal do Convento do Carmo e ingressou nas tropas da República que deveriam marchar para o Norte.

Caiu prisioneiro ainda em território pernambucano na batalha do engenho Utinga, na região do Cabo de Santo Agostinho. Nos anos seguintes, equilibrou-se entre insurgente, agitador, polemista e pensador político. Em seus escritos, contudo, nunca se sabe onde começa a palavra e termina a ação, registrou o cientista político Vamirech Chacon, na introdução ao livro que reúne os artigos originalmente publicados no Typhis Pernambucano, o jornal que frei Caneca editou entre dezembro de 1823 e agosto de 1824.

Às vésperas da Confederação do Equador, ele alinhavou nas páginas desse jornal o formato final do argumento autonomista que Pernambuco estava construindo desde a Revolução de 1817 para sustentar o projeto político dessa outra independência. "Nós estamos, sim, independentes, mas não constituídos", escreveu em 1824.

"O Brasil, só pelo fato de sua separação de Portugal e proclamação da sua Independência, ficou de fato independente, não só no todo como em cada uma de suas partes ou províncias; e estas independentes umas das outras. Ficou o Brasil soberano, não só no todo, como em cada uma de suas partes ou províncias."

Uma vez desfeita a unidade do Reino de Portugal, Brasil e Algarves, a soberania revertia às províncias onde, aliás, deveria residir. Cabia a elas negociar um pacto constitucional com a Coroa, no Rio, ou constituir unidades separadamente sobre o sistema que melhor lhes conviesse.

Em 1823, com a reunião da Assembleia Constituinte, frei Caneca avaliava ser possível pactuar com o Rio a aceitação da monarquia —desde que autenticamente constitucional e desde que estivesse garantido o principio da autonomia provincial na Constituição brasileira.

Pedro 1º, contudo, tinha outros planos. Em novembro de 1823, fechou a Constituinte; em 1824, outorgou ao Brasil uma Constituição. Para frei Caneca, não havia mais volta: "Do Rio de Janeiro, nada, nada; não queremos nada", declarou.

A Confederação do Equador eclodiu em julho de 1824, e ele estava na liderança do movimento revolucionário. Era urgente se dirigir aos brasileiros e às províncias do Norte e frei Caneca publicou uma sequência de artigos com uma análise notável e algo profética sobre o despotismo.

"A soberania reside na Nação. [...] Como sua Majestade Imperial não é nação, não tem soberania, nem comissão da nação brasileira para arranjar esboços de Constituição e apresentá-los, não vem esse projeto de fonte legítima e por isso se deve rejeitar por exceção de incompetência."

Frei Caneca detalhou cada um dos ingredientes despóticos que Pedro 1º introduziu na Constituição. O Poder Moderador era "a chave-mestra da opressão da nação", decerto; mas "a guarda avançada do despotismo", como ele dizia, sustentava-se em duas frentes.

Uma na concentração de poderes: "se S. Majestade há de ser o chefe do Poder Executivo, como há de ter parte na legislação?". A outra frente na renitente disposição das Forças Armadas para se envolverem em política: "Quando [soldados] pretendem influir nos negócios civis e políticos são despóticos, obstruem os vasos vitais da sociedade, empecem o andamento regular das suas molas, são inimigos da pátria e temerosos aos seus cidadãos".

Como antídoto contra o despotismo, frei Caneca propôs, pela primeira vez no Brasil, os termos para uma Constituição livre que incluísse um catálogo de direitos: liberdade de imprensa, liberdade política, igualdade civil.

O Rio de Janeiro reagiu de imediato. O porto do Recife foi bloqueado, e a cidade canhoneada pelos navios de guerra do almirante Cochrane, o mercenário escocês contratado por Pedro 1º para as operações militares que garantiram a centralização do território brasileiro.

No dia 12 de setembro de 1824, o Recife rendeu-se. Comandado por frei Caneca, o Exército da Confederação tentou resistir. Entrou pelo interior rumo à Quixeramobim (CE), onde havia a esperança de unificar a resistência. Mas não deu tempo: as forças confederadas foram cercadas e derrotadas pelas tropas imperiais já em território cearense.

Após julgamento sumário, frei Caneca foi condenado à forca. Nenhum carrasco se dispôs a cumprir a sentença. Foi então fuzilado a tiros de arcabuz, em 13 de janeiro de 1825, na fortaleza das Cinco Pontas, no Recife.

*Professora do Departamento de História da UFMG. Autora, entre outros livros, de “Ser Republicano no Brasil Colônia: A História de uma Tradição Esquecida” (Companhia das Letras). Co-organizadora, com Antonia Pellegrino, de “Independência do Brasil: As Mulheres que Estavam Lá” (Bazar do Tempo)

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Quanto horror e iniquidade,fuzilar um legítimo herói nacional!