Folha de S. Paulo / Ilustríssima
Frei Caneca foi o principal pensador
político do processo de emancipação do Brasil que se desenhou a partir de
Pernambuco, saltando do convento para as trincheiras na Revolução de 1817 e na
Confederação do Equador, de 1824. Em seus escritos e atos práticos, associou a
ideia de pátria à noção de virtude civil em relação à terra que se habita,
defendeu uma Constituição que abarcasse uma lista de direitos e se opôs ao
despotismo de dom Pedro, o que o levou à morte por fuzilamento.
A cabeleira amarelo-avermelhada era inconfundível. "Sou ruivo",
disparou frei Caneca, em meio à polêmica que travou com o redator do jornal A
Arara Pernambucana em junho de 1823, para confirmar, de uma vez por todas, a
ascendência paterna portuguesa —aliás, a avó, Francisca Alexandrina, ganhara o
apelido de Ruibaca, no Bairro Alto, em Lisboa, em consequência da ruividão.
A origem materna, ao contrário, estava
entroncada desde meados do século 17, entre os indígenas e os escravizados
africanos. Principiava na figura de sua trisavó, que ele reinventou com o nome
Maria das Estrelas: "Pois é ponto de fé pia que essa Maria das Estrelas,
minha trisavó, havia de ser alguma Tapuia, Potiguari, Tupinambá, senhora de
muito mingau, tipoias, aipim e macaxeira; e também se foi alguma rainha Ginga,
nenhum mal me fez; já está à porta o tempo de muito nos honrarmos do sangue
africano".
O que se conhece sobre as origens de
frei Caneca deve-se a ele mesmo, registrou o historiador Evaldo
Cabral de Mello na introdução do volume que reúne seus principais escritos
políticos. Difícil saber ao certo quando a investigação genealógica teve
início, mas ela não tinha nada de inofensivo; servia bem ao debate público.
Desenrascar o enredo de sua ascendência
talvez tenha lhe fornecido, ainda em 1822, algumas das respostas de que
precisava para concretizar as bases de um projeto
alternativo ao processo de Independência como empresado no Rio de Janeiro:
federalista, voltado para a garantia do princípio do autogoverno provincial,
ancorado na ideia de pátria e na figura de um personagem de inspiração
republicana —o "cidadão patriota".
No dia 6 de março de 1817, antes mesmo de se processar a ruptura com Lisboa, a República foi proclamada na cidade do Recife. A Revolução de 1817 contestou o projeto de Império brasileiro encabeçado pela Corte instalada no Rio e abriu o ciclo revolucionário da Independência.
Em julho de 1824, a Confederação do Equador
reafirmou a autonomia de Pernambuco, reimplantou a República, conjurou nova
revolução e convidou os vizinhos do Norte a aderirem: Piauí, Ceará, Rio Grande
do Norte, Alagoas, Sergipe, Paraíba.
Foi "a outra
independência", nomeou Evaldo em seu livro, e frei Caneca era
seu mais importante pensador político. A "pátria do cidadão não é só o
lugar em que ele nasceu como também aquele em que ele fez sua morada e fixou o
estabelecimento", escreveu em sua "Dissertação sobre o que se deve
entender por pátria do cidadão e deveres deste para com a mesma pátria", logo nos
primeiros dias de 1822.
Em uma província disposta a conceber e
liderar um projeto de soberania para escapar ao controle tanto de Lisboa quanto
do Rio e que sustentava uma longa história de hostilidade contra os reinóis,
ele estava propondo uma solução inédita em termos de independência para o então
Reino do Brasil: articulou a ideia de pátria, a terra onde se nasce, à cidade
onde se compartilha uma vida em comum.
Associar pátria à noção de virtude civil
permitiu-lhe convocar a sociedade pernambucana para um pacto histórico.
"Patriota" identificava uma pessoa capaz de admitir ser possível
compatibilizar a existência de um território nativo e ancestral com o reconhecimento
de que o convívio entre os homens demanda a construção de um modo próprio de
viver livre em uma cultura comum.
Como seria típico de seus escritos, o
argumento exige uma tomada de posição imediata e concreta diante da conjuntura
política: os portugueses domiciliados em Pernambuco e empenhados em seu
progresso, onde tinham família e ofício, eram tão patriotas quanto os naturais
da terra —não cabia antagonismo entre eles.
Também deixava claro que isso teria
consequências frente ao que estava por vir: Pernambuco era a pátria de direito
da comunidade reinol, o lugar onde se estabeleceram e por
onde deveriam optar, em caso de conflito com Lisboa ou com o Rio.
Joaquim do Amor Divino Rabello, o frei
Caneca, nasceu em 1779, no Recife. Era o primogênito de Francisca Alexandrina
de Siqueira e Domingos da Silva Rabelo, um tanoeiro que fabricava e consertava
pipas, barris, tinas e, naturalmente, canecas, que o filho iria adotar ao nome
quando se ordenou frade carmelita, em 1801, com apenas 22 anos. Como a Ordem do
Carmo oferecia ensino aos filhos de imigrantes portugueses e a carreira
eclesiástica seria uma via segura de promoção social, Joaquim se fez noviço.
Era um leitor voraz que transitava entre a
matemática e a geometria, a teoria literária e a retórica, a história e o
pensamento político. Tornou-se um leitor público, anotou o historiador Denis
Bernardes, partilhando e espalhando suas leituras e ideias nas salas de aula
—na condição de professor de geometria, retórica e filosofia—, no púlpito da
igreja e, naturalmente, nas reuniões e assembleias que se repetiam com
intensidade cada vez maior no Recife, sobretudo a partir da Revolução de 1817.
Sua formação política, com as leituras
republicanas, foi resultado das disciplinas que cursou no Seminário de Nossa
Senhora da Graça, em Olinda, a instituição de ensino mais inovadora do Brasil
no período colonial e polo irradiador das ideias do Iluminismo no Nordeste.
A frequência com que comparecia às reuniões
na Academia do Paraíso, por sua vez, facultou-lhe o trânsito entre a palavra e
a agitação revolucionária. Instalada no hospital do Paraíso, a academia se
organizava como círculo de sociabilidade intelectual e intervenção política,
além de centro de difusão de ideias republicanas e núcleo de conspiração
anterior à Revolução de 1817.
A carreira eclesiástica deslanchou bem. O
problema eram os interesses de frei Caneca que ultrapassavam, e muito, os muros
do convento do Carmo. Havia a relação amorosa que manteve com uma mulher que
nunca nomeou e com quem teve uma filha. Às vésperas de sua execução, em 1825,
escreveu uns versos que ficaram famosos, dedicados à mulher que arrebatou seu
coração e a quem se dirigia de acordo com o protocolo árcade, bem à moda de
Tomás Antônio Gonzaga: "Entre Marília e a Pátria/ coloquei meu coração:/ A
Pátria roubou-m’o todo;/ Marília que chore em vão".
E havia a política. Na Revolução de 1817,
frei Caneca é um insurgente. Conclamou a população a se levantar contra o
domínio português, animou grupos de pessoas em exercícios de tiro praticados no
quintal do Convento do Carmo e ingressou nas tropas da República que deveriam
marchar para o Norte.
Caiu prisioneiro ainda em território
pernambucano na batalha do engenho Utinga, na região do Cabo de Santo
Agostinho. Nos anos seguintes, equilibrou-se entre insurgente, agitador,
polemista e pensador político. Em seus escritos, contudo, nunca se sabe onde
começa a palavra e termina a ação, registrou o cientista político Vamirech
Chacon, na introdução ao livro que reúne os artigos originalmente publicados no
Typhis Pernambucano, o jornal que frei Caneca editou entre dezembro de 1823 e
agosto de 1824.
Às vésperas
da Confederação do Equador, ele alinhavou nas páginas desse
jornal o formato final do argumento autonomista que Pernambuco estava
construindo desde a Revolução de 1817 para sustentar o projeto político dessa
outra independência. "Nós estamos, sim, independentes, mas não
constituídos", escreveu em 1824.
"O Brasil, só pelo fato de sua
separação de Portugal e proclamação da sua Independência, ficou de fato
independente, não só no todo como em cada uma de suas partes ou províncias; e
estas independentes umas das outras. Ficou o Brasil soberano, não só no todo,
como em cada uma de suas partes ou províncias."
Uma vez desfeita a unidade do Reino de
Portugal, Brasil e Algarves, a soberania revertia às províncias onde, aliás,
deveria residir. Cabia a elas negociar um pacto constitucional com a Coroa, no
Rio, ou constituir unidades separadamente sobre o sistema que melhor lhes
conviesse.
Em 1823, com a reunião da Assembleia
Constituinte, frei Caneca avaliava ser possível pactuar com o Rio a aceitação
da monarquia —desde que autenticamente constitucional e desde que estivesse
garantido o principio da autonomia provincial na Constituição brasileira.
Pedro 1º,
contudo, tinha outros planos. Em novembro de 1823, fechou a
Constituinte; em 1824, outorgou ao Brasil uma Constituição. Para frei Caneca,
não havia mais volta: "Do Rio de Janeiro, nada, nada; não queremos
nada", declarou.
A
Confederação do Equador eclodiu em julho de 1824, e ele estava
na liderança do movimento revolucionário. Era urgente se dirigir aos
brasileiros e às províncias do Norte e frei Caneca publicou uma sequência de
artigos com uma análise notável e algo profética sobre o despotismo.
"A soberania reside na Nação. [...]
Como sua Majestade Imperial não é nação, não tem soberania, nem comissão da
nação brasileira para arranjar esboços de Constituição e apresentá-los, não vem
esse projeto de fonte legítima e por isso se deve rejeitar por exceção de
incompetência."
Frei Caneca
detalhou cada um dos ingredientes despóticos que Pedro 1º introduziu na
Constituição. O Poder Moderador era "a chave-mestra da opressão
da nação", decerto; mas "a guarda avançada do despotismo", como
ele dizia, sustentava-se em duas frentes.
Uma na concentração de poderes: "se S.
Majestade há de ser o chefe do Poder Executivo, como há de ter parte na
legislação?". A outra frente na renitente disposição das Forças Armadas
para se envolverem em política: "Quando [soldados] pretendem influir nos
negócios civis e políticos são despóticos, obstruem os vasos vitais da
sociedade, empecem o andamento regular das suas molas, são inimigos da pátria e
temerosos aos seus cidadãos".
Como antídoto contra o despotismo, frei
Caneca propôs, pela primeira vez no Brasil, os termos para uma Constituição
livre que incluísse um catálogo de direitos: liberdade de imprensa, liberdade
política, igualdade civil.
O Rio de Janeiro reagiu de imediato. O
porto do Recife foi bloqueado, e a cidade canhoneada pelos navios de guerra
do almirante
Cochrane, o mercenário escocês contratado por Pedro 1º para as
operações militares que garantiram a centralização do território brasileiro.
No dia 12 de setembro de 1824, o Recife
rendeu-se. Comandado por frei Caneca, o Exército da Confederação tentou
resistir. Entrou pelo interior rumo à Quixeramobim (CE), onde havia a esperança
de unificar a resistência. Mas não deu tempo: as forças confederadas foram
cercadas e derrotadas pelas tropas imperiais já em território cearense.
Após julgamento sumário, frei Caneca foi condenado à forca. Nenhum carrasco se dispôs a cumprir a sentença. Foi então fuzilado a tiros de arcabuz, em 13 de janeiro de 1825, na fortaleza das Cinco Pontas, no Recife.
*Professora do Departamento de História da UFMG. Autora, entre outros livros, de “Ser Republicano no Brasil Colônia: A História de uma Tradição Esquecida” (Companhia das Letras). Co-organizadora, com Antonia Pellegrino, de “Independência do Brasil: As Mulheres que Estavam Lá” (Bazar do Tempo)
Um comentário:
Quanto horror e iniquidade,fuzilar um legítimo herói nacional!
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