Decisão do STF respeita caráter do jornalismo
O Globo
Ao divulgar acusações falsas de terceiros,
veículo de imprensa só poderá ser punido se houver má-fé
Foi positiva a decisão do Supremo Tribunal
Federal (STF) que fixou uma tese para os casos em que veículos de imprensa
publicam em entrevistas declarações com acusações falsas. Embora ainda haja
dúvida sobre como será interpretada, a tese consagra de forma clara a plena
liberdade de informação e expressão, determinando que uma empresa jornalística
só pode ser considerada responsável por declarações caluniosas de seus
entrevistados se tiver sido deliberadamente negligente na tentativa de apurar
os fatos.
A decisão foi tomada depois do caso em que o Diário de Pernambuco foi condenado a pagar indenização por ter publicado entrevista com uma acusação falsa sobre um militante político na ditadura militar. Ao longo do julgamento, os ministros sugeriram várias teses para definir em que condições um veículo deve ser considerado corresponsável por declarações que publica. Descartando ideias que trariam risco à liberdade de expressão ou poderiam inibir o trabalho da imprensa, o STF formou consenso em torno de uma tese que respeita as características intrínsecas do jornalismo.
A tese consensual, que deverá ser aplicada a
pelo menos 119 outros casos, reitera a jurisprudência consagrada no Supremo
sobre liberdade de expressão. Reafirma que a Constituição proíbe qualquer tipo
de censura prévia, mas há possibilidade de responsabilização posterior pela
publicação de informações “comprovadamente injuriosas, difamantes, caluniosas,
mentirosas”. No caso de um entrevistado atribuir falsamente crime a terceiros,
o veículo de comunicação só poderá ser considerado responsável se duas condições
forem satisfeitas. Primeiro, se na época da publicação havia “indícios
concretos” de que a acusação era falsa. Segundo, se ele tiver deixado de
“observar o dever de cuidado” ao verificar os fatos.
A principal virtude da tese é contemplar as
circunstâncias singulares da atividade jornalística. A imprensa tem o dever de
divulgar informações no calor dos acontecimentos e, embora deva ser responsável
pelo que publica, não está à prova de erros. Se fatos ou declarações de
terceiros depois se revelam equivocados, a única justificativa para punição é
ter havido negligência ou má-fé. É esse o espírito da tese.
Há dúvida, contudo, sobre como os tribunais
interpretarão as condições impostas para configurar a responsabilidade dos
veículos. As expressões “indícios concretos de falsidade” e “dever de cuidado”
abrem margem a interpretações subjetivas. Na nota em que elogiou a tese, a
Associação Nacional de Jornais (ANJ) afirma esperar que no acórdão do
julgamento “tais dúvidas sejam dirimidas, bem como outras situações” como
entrevistas ao vivo.
Outra questão a resolver é a menção na tese à
possibilidade de remoção de conteúdo de sites jornalísticos julgados culpados
de violações. Embora possa haver casos extremos em que essa punição seja
adequada, ela deve ser compreendida como último recurso, quando os demais
remédios legais — como direito de resposta ou indenização — não estiverem
disponíveis.
Apesar dessas ressalvas, é fundamental
reconhecer o papel do Supremo na preservação das liberdades de informação e
expressão, cruciais para a saúde de qualquer democracia. A postura dos
ministros diante do tema não deixa dúvida de que continuarão a zelar por elas
nos esclarecimentos que deverão constar do acórdão, cuja redação está a cargo
do ministro Edson
Fachin.
‘Jabutis’ em legislação do setor elétrico
encarecem a conta de luz
O Globo
Iniciativas para favorecer térmicas e outros
grupos de interesse tornarão a eletricidade mais cara ao consumidor
Têm se tornado frequentes as pressões nos
bastidores do setor elétrico contra o interesse do consumidor. Em projetos
recentes de geração de energia,
bilhões têm sido extraídos das contas de luz para subsidiar este ou aquele
segmento. O exemplo mais eloquente foi a inclusão do proverbial “jabuti das
térmicas” na lei que autorizou a privatização da Eletrobras.
Sem nenhum sentido econômico, ela tornou obrigatórios leilões de termelétricas
a gás em regiões onde não há gás. A obrigação torna necessária a construção de
gasodutos para abastecê-las, com custo transferido à população.
A ação mais recente dos grupos de pressão no
setor de energia se faz sentir no projeto do marco regulatório para usinas
eólicas offshore, necessário para garantir segurança jurídica à diversificação
da matriz energética brasileira. Uma profusão de novos “jabutis” sem relação
com o tema incluídos no projeto aprovado na Câmara custará pelo menos R$ 27
bilhões por ano à conta de luz dos brasileiros, pelos cálculos da Abrace,
associação que congrega grandes consumidores de energia.
Entre os “jabutis”, estão subsídios à energia
solar, repasse de custos ao mercado livre (mecanismo de negociação por meio do
qual consumidores escolhem seu fornecedor), mudanças na Conta de
Desenvolvimento Energético, com encarecimento da energia para Sudeste e
Nordeste e, naturalmente, incentivos a usinas térmicas. A lei de privatização
da Eletrobras fixou em 8 gigawatts a reserva de mercado para térmicas a gás.
Diante da baixa adesão aos leilões, a ideia é suprir parte dessa energia com
hidrelétricas de pequeno porte, de custo operacional mais alto. Outro “jabuti”
acaba com o teto antes estabelecido para o preço da energia das termelétricas,
numa tentativa de torná-las mais rentáveis.
Por fim, o projeto aprovado favorece térmicas
a carvão com a extensão até 2050 do prazo em que será permitido contratá-las. O
carvão, vale lembrar, é a forma de gerar energia que mais contribui para o
aquecimento global. Negociações internacionais procuram bani-lo da matriz
energética planetária, e no Brasil seu uso é desnecessário.
As pressões não se limitam ao projeto que
seguiu ao Senado. Na semana passada, o blog da colunista Malu Gaspar, do GLOBO,
revelou a tentativa de transportar mais um “jabuti” para uma Medida Provisória
de incentivo a empresas de energias renováveis. A emenda à MP retirava o custo
de transporte do preço da energia oferecida pelas termelétricas, de modo a
torná-las mais competitivas. Com a revelação da manobra, o Palácio do Planalto
cancelou a solenidade de assinatura da MP.
Um país como o Brasil precisa de uma matriz
energética limpa e diversificada, de modo a garantir a queda nas emissões de
gases de efeito estufa e a segurança energética necessária ao crescimento
econômico futuro. As térmicas têm seu papel nessa matriz, mas todo
empreendimento — como a nova rede de gasodutos necessária para torná-las
viáveis — precisa se justificar economicamente num mercado sem distorções. Do
contrário, todo custo passará às contas de luz.
Inflação global acelera seu ritmo de queda
Valor Econômico
Há bons motivos para acreditar que a inflação
e os juros não serão tão baixos quanto antes nos países avançados
A inflação nos Estados Unidos e Europa está
caindo rapidamente, depois de mostrar resistência às maiores altas de juros em
décadas nos dois lados do Atlântico. Dados de um par de meses não farão os
Bancos Centrais desarmarem suas defesas, mas as ressalvas de que não hesitarão
em voltar a elevar os juros, se necessário, feitas explicitamente pelo Federal
Reserve e pelo Banco Central Europeu (BCE), tendem a ser tornar pro forma. Os
investidores voltaram a prever o afrouxamento monetário já no primeiro semestre
de 2024. Há muitas incertezas e margens para surpresas, mas os juros parecem
ter chegado ao pico no atual ciclo de aperto e seu caminho agora tende a uma só
direção - para baixo.
Com a economia se retraindo
significativamente, a zona do euro teve brusco declínio da inflação em 12 meses
em novembro, 2,4%, já não muito distante da meta do BCE, a de cifra próxima,
mas inferior, a 2%. A previsão de crescimento para o ano, de 0,6%, indica que o
bloco escapará da recessão, mas o esfriamento das atividades deu nova cadência
à queda dos preços. Em agosto, o índice de preços ao consumidor ao ano foi de
5,2%. É possível que haja algum repique na inflação até o fim do ano, com a
chegada do inverno e o aumento dos preços da energia. Ainda assim, a Europa
livrou-se mais rapidamente do que o previsto da dependência forte do gás russo,
após explosão de custos com a invasão da Ucrânia pela Rússia.
A presidente do BCE, Christine Lagarde,
disse, porém, que ainda é muito cedo para “cantar vitória” e que está
preocupada com a pressão salarial, segundo ela uma das fontes de impulso
inflacionário atual. A curva de juros futuros indica que os investidores, no
entanto, pensam diferente - para eles, o BCE começará a cortar a taxa de 4% em
abril. Alguns membros do BCE, como Fabio Panetta, presidente do BC italiano, já
passaram a advertir que a manutenção dos juros altos poderá provocar “danos
desnecessários” às atividades econômicas.
A tensão entre os dois momentos, o de aperto
monetário e o de sua distensão, são mais acentuadas nos EUA. A economia cresceu
a um ritmo quase chinês no terceiro trimestre, 5,2%, indicando um vigor que
talvez recomendasse novas doses de juros. Mas os gastos com o consumo estão se
reduzindo, assim como o apertado mercado de trabalho dá sinais de perda de
fôlego. A previsão da OCDE, divulgada anteontem, aponta um freio forte no
crescimento, de 1,5% no ano que vem.
Os preços estão se adequando ao figurino de
perda de ritmo da economia e custo do dinheiro elevado. Os gastos pessoais de
consumo em outubro recuaram para 3%, ante 3,4% em setembro. O núcleo desse
indicador, o preferido do Fed, recuou de 3,7% para 3,5%, ainda distante da meta
de 2% do Banco Central. O livro Bege do Fed, divulgado esta semana, indicou
atividade estagnada ou fraca na maior parte dos distritos em que o banco atua
em novembro e enfraquecimento das pressões salariais.
As condições financeiras nos países avançados
afrouxaram, com os investidores estimando a reversão do ciclo dos juros já em
março. Sinais de membros mais ortodoxos do Fed de que novos aumentos
provavelmente não ocorrerão deram força ao otimismo, que derrubou os títulos de
10 anos do Tesouro da fronteira dos 5% em outubro para 4,26% agora. É um espaço
de tempo muito curto para uma reviravolta do Fed, porém possível. Nos países
ricos, a média móvel trimestral dessazonalizada dos preços, anualizada, indica
que os índices de inflação já se aproximaram bastante das metas (Chris Giles,
FT, 7 de novembro).
A manutenção dos juros e a perspectiva de que
não subirão mais quebraram a tendência de alta do dólar e devolveram uma parte
do apetite pelo risco dos investidores em mercados emergentes. O recuo do dólar
(6,87% no ano) em relação ao real tem sido um coadjuvante importante na queda
do IPCA, que fechará dentro dos intervalos da banda da meta de inflação, algo
antes improvável.
A aposta preponderante dos investidores no
mercado de derivativos é de valorização do real. Ao contrário de 2021, quando
preços de commodities em alta caminharam junto com dólar mais caro (movimento
inusual), fazendo a inflação romper os 10%, agora commodities em baixa, com o
dólar na mesma direção, contribuem para reduzir os preços domésticos. Previsões
da OCDE estimam inflação de 3,2% em 2024, nível mais otimista que o do próprio
cenário de referência do BC brasileiro (3,6%) e do boletim Focus (3,9%).
Se há alguma clareza sobre o curto prazo, ela se embaça em relação ao longo prazo. Há bons motivos para acreditar que a inflação e os juros não serão tão baixos quanto antes nos países avançados, e que as taxas seguirão altas por um bom tempo. Pressões globais, como a transição verde, o envelhecimento populacional e a cisão entre China e EUA, tendem a aumentar custos e elevar os déficits fiscais. Para o Brasil, o acesso à poupança externa tenderá a ficar mais caro e menos abundante, mas sem mudanças drásticas em uma perspectiva de crescimento que se mantém preocupantemente baixa.
Capítulo sombrio
Folha de S. Paulo
Contra a própria história, STF abre brecha
para ataque à liberdade de informação
Capitaneados por Alexandre de Moraes, os
atuais ministros do Supremo Tribunal Federal mostraram-se dispostos, na última
quarta-feira (29), a inaugurar um capítulo sombrio na história da corte.
Como se ignorassem que o STF tem longa
tradição na defesa inequívoca da liberdade de imprensa, resolveram
flexibilizá-la; como se desconhecessem a relação vital entre democracia e
liberdade de informação jornalística, cercearam esta e arriscaram aquela; como
se pudessem desconsiderar a Constituição, deram as costas para ela.
Não são outras as consequências do julgamento
sobre um pedido de indenização feito ao Diário de Pernambuco por conteúdo
publicado em 1995, no qual o STF deliberou que o veículo de comunicação pode
ser responsabilizado
na esfera civil pelas declarações de um entrevistado que impute
falsamente prática de crime a terceiro.
O que seria apenas uma decisão absurda tomada
por um órgão judicial adquiriu outra dimensão quando o Supremo, sem
necessidade, optou por extrapolar do caso concreto para o universal, fixando
uma tese geral a ser utilizada como baliza em situações semelhantes.
De acordo com o STF, na hipótese de um
entrevistado atribuir a outrem a prática de um crime, a empresa jornalística
somente poderá ser responsabilizada se, "à época
da divulgação, havia indícios concretos da falsidade da imputação" e,
ao mesmo tempo, o veículo não tiver observado "o dever de cuidado na
verificação da veracidade dos fatos".
Ainda que a dupla condicionante tenha em tese
o condão de demonstrar quão excepcionais devem ser as circunstâncias para
possibilitar a sanção, seu efeito pode ser o oposto: a nova regra abre mais
brechas do que fecha e deixa a imprensa mais vulnerável.
Os pequenos veículos, em particular, sem
recursos para manter um departamento jurídico, ficarão à mercê do que juízes
entenderão como "indício concreto" e "dever de cuidado" —um
prejuízo de monta para a liberdade jornalística, sobretudo quando se conhece o
grau de promiscuidade entre poderosos país afora.
Mesmo a chamada grande mídia, em tese mais
capacitada para enfrentar o assédio judicial, poderá vir a exercer alguma
autocensura, sacrificando a circulação da informação para evitar
arbitrariedades.
Mede-se o tamanho desse golpe pela régua da
Constituição, que rechaça qualquer embaraço à "plena liberdade de
informação jornalística". Repita-se, por ênfase: plena.
Embora o julgamento tenha sido encerrado, e a
tese geral, estabelecida, ainda há tempo de minimizar seus efeitos mais
nocivos. É imperioso que o relator do acórdão, Edson Fachin, afaste
ambiguidades da decisão, dirima dúvidas e esclareça se o STF continua defensor
intransigente da liberdade de imprensa ou se mudou de lado.
O legado de Kissinger
Folha de S. Paulo
Para o bem e o mal, diplomata do pós-guerra
ajudou a moldar o mundo do século 20
Gênio da diplomacia. Manipulador
inescrupuloso. Maestro da Guerra Fria e pai da disputa geopolítica entre China
e Estados Unidos. Criminoso responsável por ditaduras e políticas de
extermínio.
Morto aos 100
anos, Heinz Alfred Kissinger era um dos poucos homens que podiam
receber todas as qualificações acima. Ao mesmo tempo, como gostava de dizer,
ser vilão e herói no fluxo histórico.
Kissinger, um judeu alemão cuja família fugiu
do nazismo, tornou-se o americano Henry e avançou uma brilhante carreira
acadêmica.
No seu doutorado em Harvard, publicado em
1957 como livro sobre a paz do Congresso de Viena no século 19, encontra-se seu
modelo presumido: o príncipe austríaco Klemens von Metternich, artífice do
longo período de relativa estabilidade europeia pós-Napoleão.
O nobre, escreveu Kissinger, destacou-se pela
manipulação e pela sutileza. Da mesma forma, como acadêmico, diplomata, alto
funcionário e consultor milionário, foi ouvido por 12 presidentes americanos,
notavelmente o antissemita Richard Nixon, a quem desprezava.
E não só, como a recente
visita do "velho amigo da China" a Xi Jinping provou.
O país asiático é talvez o zênite da carreira de Kissinger. Como conselheiro de
Segurança Nacional e secretário de Estado, estabeleceu os laços que levaram
Pequim a ser o chão de fábrica do Ocidente por várias décadas.
Como a paz de Metternich desaguou no primeiro
conflito mundial cem anos depois, o objetivo inicial de Kissinger com a China,
de minar o poderio soviético nos anos 1970, gestou a segunda Guerra Fria entre
Pequim e Washington.
A lista de eventos do fim do século 20 com a
mão do diplomata é infindável, como a aceitação enrustida da derrota no Vietnã
que lhe rendeu um Nobel da Paz e a instalação dos EUA como vetor central no
Oriente Médio por décadas.
Aqui, as tintas do legado se tornam sombrias,
quando não enrubescem pelo sangue derramado de 50 mil cambodjanos mortos numa
campanha aérea brutal e ilegal dos EUA, ou das vítimas da ditadura de Augusto
Pinochet, cuja ascensão
patrocinou em 1973 no Chile.
Como todo colosso, Kissinger tinha fraturas e áreas de sombra. Defini-lo só por uma coisa ou outra é negar a complexidade inerente às grandes figuras históricas.
O STF e imprensa responsável
O Estado de S. Paulo
Ao fixar parâmetros para que uma empresa
jornalística possa ser punida por calúnia praticada por entrevistado, STF trata
menos da liberdade e mais da responsabilidade da imprensa
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu
anteontem que uma empresa jornalística que publicar entrevista na qual o
entrevistado atribui falsamente a terceiros a prática de um crime só pode ser
responsabilizada civilmente se ficar provado que, “na época da divulgação da
entrevista, já se sabia, por indícios concretos, que a acusação era falsa e a
empresa não cumpriu o dever de cuidado de verificar a veracidade dos fatos e de
divulgar que a acusação era controvertida”.
O caso em questão envolve o jornal Diário de
Pernambuco, que em 1995 publicou uma entrevista na qual o delegado Wandenkolk
Wanderley disse que o ex-deputado petista Ricardo Zarattini Filho participou de
um atentado a bomba no Aeroporto dos Guararapes, no Recife, em 1966. O
ex-deputado entrou na Justiça contra o jornal, alegando que a informação era
sabidamente falsa na ocasião e que não lhe foi dada a oportunidade de
contestá-la. Derrotado em primeira instância, Zarattini recorreu e ganhou a
causa no Superior Tribunal de Justiça. Mas o Diário de Pernambuco entrou com
recurso no Supremo, sob o argumento de que foi condenado apenas porque publicou
uma entrevista, e que por isso a punição representava cerceamento da liberdade
de imprensa.
O Supremo já havia rejeitado o recurso do
jornal, mas decidiu fixar uma tese para casos semelhantes no futuro, o que
gerou grande apreensão entre as empresas jornalísticas, dado o risco de
facilitara punição de veículos em razão da mera publicação de entrevistas que
contenham acusações.
O ideal ser iaque o Supremo não fixasse tese
alguma– e agrande variedade de teses propostas pelos ministros mostrou a
dificuldade de fazê-lo, ante o fato óbvio de que não cabe ao Judiciário punir o
mau jornalismo. Mas o resultado, afinal, teve o mérito de deixar claro que a
liberdade de imprensa é fundamento inegociável da democracia eque a punição, se
houver, deve ser excepcional.
Ainda assim, salta aos olhos a vagueza dos
parâmetros estabelecidos pelo Supremo, o que pode dar margem a interpretações
que, no limite, dificultem o trabalho da imprensa. Ora, o que são afinal os
“indícios concretos” de que fala a decisão do Supremo? Como cobrar que empresas
jornalísticas verifiquem a “veracidade dos fatos” diante de acusações que
talvez nem sejam ainda objeto de investigação? E como lidar com entrevistas ao
vivo?
A Associação Nacional dos Jornais (ANJ)
ressaltou essas questões cruciais em sua manifestação a respeito da decisão do
Supremo. Ao mesmo tempo que elogiou ofato d eque atese foi“u ma vanç opositivo
diante d agrave a me açaà liberdade de imprensa”, a ANJ disse esperar “que, na
elaboração e publicação do Acórdão de Inteiro Teor sobre o julgamento, tais
dúvidas sejam dirimidas, bem como outras situações não explicitadas, como no
caso de entrevistas ao vivo, sempre em favor da preservação do preceito constitucional
da liberdade de imprensa”.
A rigor, porém, a decisão do STF diz menos
sobre a liberdade e muito mais sobre a responsabilidade da imprensa. Nesse
sentido, a Corte nem precisaria ter se manifestado sobre o assunto. “Dever de
cuidado” é algo natural para empresas jornalísticas éticas e responsáveis. Para
jornalistas que se pautam pela ética profissional, a autocensura está muito
longe de ser entendida como uma limitação ao exercício da profissão. É apenas
uma das muitas manifestações do tal dever de cuidado, a práxis elementar de jamais
publicar aquilo que não possa ser devidamente contextualizado e ponderado.
Obviamente, as empresas jornalísticas, como
quaisquer outras, não podem tudo. São rigorosamente responsáveis pelo que
publicam e, quando erram, devem ser responsabilizadas. Aliás, não se pode nem
falar propriamente em jornalismo quando não está presente – e evidente para a
sociedade – que houve zelo no trato de uma informação levada a público.
Atese do Supremo, com todos os seus
problemas, afinal serve para valorizar o jornalismo que respeita os mais
elevados padrões éticos e profissionais – valores ainda mais relevantes no
momento em que a curadoria responsável de informações é tão necessária para a
saúde da democracia.
O incrível caso da estatal Ceitec
O Estado de S. Paulo
Ao reativar empresa inútil, Lula atesta ser
incapaz de aprender com seus erros. Pior: movido pela inabalável fé em si
mesmo, insiste em repeti-los à espera de resultados diferentes
O presidente Lula da Silva reverteu, por meio
de decreto, a liquidação do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada
(Ceitec). A empresa foi incluída no ambicioso e fracassado programa de
desestatizações do governo Jair Bolsonaro, que previa privatizar, fundir e
fechar dezenas de empresas públicas federais. Como muitos outros, o processo da
Ceitec nunca foi concluído, o que permitiu à administração petista ressuscitar
a moribunda e deficitária estatal.
O caso da Ceitec é exemplar sob vários
aspectos. Ela foi uma das mais de 40 empresas públicas federais criadas durante
as administrações petistas. Nasceu com a promessa de se tornar uma grande
produtora de chips e inserir o País no disputado mapa mundial do setor de alta
tecnologia. Nada menos.
Desde 2006, a Ceitec recebeu bilhões em
investimentos do Tesouro Nacional, via subvenções e adiantamentos para futuro
aumento de capital. Esses recursos nunca colocaram a empresa em condições para
competir com as gigantes internacionais, tampouco a impediram de registrar
prejuízos durante toda a sua existência.
A Ceitec nasceu com maquinário ultrapassado,
oriundo de doações. Ao longo dos anos, a empresa não conseguiu nem mesmo
viabilizar a venda de chips para passaportes, cuja caderneta é produzida pela
também estatal Casa da Moeda. Fechar a companhia seria um caminho natural,
respaldado pela própria Constituição, que restringe a exploração direta de
atividade econômica pelo Estado aos imperativos de segurança nacional e
relevante interesse coletivo. Chips, por óbvio, nunca se encaixaram nessa
descrição.
Assim teria sido, não fossem as trapalhadas
cometidas pelo próprio governo Bolsonaro na condução desse processo. Diversas
fragilidades, como o atropelo de prazos e o menosprezo ao cumprimento de etapas
burocráticas inerentes ao setor público, entre as quais a apresentação de
estudos para subsidiar o fechamento da empresa, levaram o Tribunal de Contas da
União (TCU) a interromper a liquidação em setembro de 2021.
Focado unicamente na reeleição e sem qualquer
compromisso real com a agenda econômica, Bolsonaro nunca conseguiu destravar o
processo na Corte de Contas. Não se sabe se houve desinteresse ou incompetência
por parte de sua equipe, mas o certo é que essa inação garantiu as condições
necessárias para o atual governo reverter a liquidação assim que tomou posse.
O que fez Lula acreditar que a Ceitec merecia
receber uma segunda chance? Isso é algo que o governo teria a obrigação de
explicar. Afinal, se a própria concepção da Ceitec não se justificou
tecnicamente, recriá-la depois de tantos anos de prejuízo não tem o menor
cabimento, a não ser para reforçar o discurso estatizante do governo Lula.
Não se pode utilizar a covid-19 como pretexto
para reativá-la. A pandemia desorganizou as cadeias produtivas e evidenciou uma
crise mundial na produção de chips, mas as recentes tensões geopolíticas entre
Estados Unidos e China no mercado de semicondutores deixam claro que a disputa
vai muito além da mera liderança mundial no campo da tecnologia.
Modernizar a Ceitec, por óbvio, requer
investimentos bilionários, com os quais o deficitário Estado brasileiro não tem
a menor condição de arcar. Além de recursos públicos, este é um setor que
depende de capital humano, algo que a Ceitec tampouco conseguiu preservar. Com
o início da liquidação, a maioria dos empregados migrou para a concorrência,
seja no Brasil ou no exterior.
Ressuscitar a Ceitec, portanto, é uma decisão
com o potencial de drenar bilhões em recursos públicos nos próximos anos, sem
qualquer garantia de retorno em receitas, inovação ou produtividade para o
País.
São muitas as necessidades, as carências e as
prioridades do Estado brasileiro em educação, ciência e tecnologia, sem as
quais o crescimento e o desenvolvimento econômico continuarão a ser um sonho
distante. Recriar a Ceitec certamente não faz parte delas. Com a reativação da
estatal inútil e deficitária, Lula atesta ser incapaz de aprender com seus
próprios erros. Pior: movido pela inabalável fé em si mesmo, insiste em repeti-los
à espera de resultados diferentes.
Kissinger, o realista
O Estado de S. Paulo
O controvertido secretário de Estado
norte-americano ajudou a moldar o século 20
Se a diplomacia impediu o desborde da guerra
fria para um conflito nuclear global, como é fato, o esforço bem-sucedido
deveu-se sobretudo a Henry Kissinger. Arquiteto da détente entre Estados Unidos
e União Soviética, no início dos anos 1970, Kissinger morreu aos 100 anos no
último dia 29 legando à humanidade a mais profunda e lúcida compreensão sobre
as relações internacionais ao longo da história contemporânea e sua exitosa,
embora altamente controversa, estratégia de consolidação da Pax Americana. O “bruxo”
jamais passou ileso à crítica fundamentada. Mas será indevido omitir sua
dimensão como estadista e sua influência decisiva no jogo diplomático até seus
últimos dias de vida.
Conselheiro de Segurança Nacional e
secretário de Estado dos Estados Unidos no período de 1969 a 1977, sob os
presidentes Richard Nixon e Gerald Ford, Kissinger moveu-se com habilidade
notável em um capítulo potencialmente incendiário da guerra fria. Em especial,
ao costurar em conversas secretas o surpreendente encontro em Pequim entre
Nixon e Mao Tsé-tung, em 1972. À distensão das relações entre a potência
ocidental e a “China Vermelha” da época somaram-se a exitosa tática de
isolamento de Moscou, a negociação do primeiro acordo bilateral de contenção de
ameaças nucleares e os tratados de paz com o Vietnã – que lhe valeu o Prêmio
Nobel da Paz de 1973 e, aos EUA, uma saída menos desonrosa de sua guerra na
Ásia.
Kissinger jogava com habilidade em diferentes
tabuleiros, sem jamais admitir desvios em seu objetivo de consolidar uma
hegemonia de longo prazo dos EUA. Sobretudo, não abria mão de sua doutrina
ultrarrealista, cujos conceitos estão refletidos nas suas obras-primas
Diplomacia e Sobre a China. Descrito como arrogante, temperamental e paranoico,
acumulou acusações por crimes contra a humanidade e passou por cima de valores
democráticos do país que o acolheu, ainda menino, como refugiado da perseguição
da Alemanha nazista aos judeus.
As centenas de milhares de vítimas dos
bombardeios no Camboja e no Paquistão do Leste (Bangladesh), a tomada do Timor
Leste pela Indonésia e a derrubada do governo chileno de Salvador Allende
impregnam sua biografia, na qual se inclui o apoio da Casa Branca às ditaduras
da América Sul, entre as quais a do Brasil. À revista The Atlantic, em 2016, o
ex-presidente Barack Obama afirmou que Nixon e Kissinger “deixaram para trás o
caos, massacres e governos autoritários”. “De que maneira aquela estratégia promoveu
nossos interesses?”, questionou Obama, um dos raros líderes americanos
impermeáveis aos conselhos de Kissinger.
A indagação continua em aberto. A lucidez de
Kissinger sobre o cenário do pós-guerra fria jamais foi desprezada, como prova
seu recente conselho a Washington para buscar com a China o melhor diálogo
sobre a inteligência artificial. Vale a pena registrar um de seus últimos
alertas, dado à The Economist em maio passado: “Estamos em um mundo de
destrutividade sem precedentes”.
Autistas e seus cuidadores
Correio Braziliense
As condições de saúde mental e física e do
dia a dia das pessoas autistas, 49% afirmam que possuem alguma doença crônica
ou secundária que foi identificada junto ao diagnóstico de Transtorno de
Espectro Autista (TEA)
O vertiginoso aumento de diagnósticos de
autismo — tanto precoces quanto tardios — tem contribuído para que o
tema seja um dos mais discutidos entre autoridades de saúde, famílias e
celebridades. No entanto, o Brasil encontra uma profunda ausência de
informações e dados atualizados sobre a condição. Prova disso é que um dos
últimos dados de que se tem notícia sobre o tema é de 2010, e refere-se a um
estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS), que cita que o Brasil teria,
naquele ano, aproximadamente 2 milhões de pessoas com autismo. Imaginemos esse
número nos dias de hoje, 13 anos depois.
Recentemente, estudo desenvolvido pela
healthtech Genial Care em parceria com a Tismoo.me (plataforma de saúde
destinada a condições de neurodesenvolvimento) fez um panorama com informações
relevantes sobre pessoas autistas e suas famílias. O Retratos do Autismo
no Brasil em 2023, lançado em novembro, contou com a participação de mais de 2
mil pessoas autistas ou cuidadoras de pessoas nessa condição.
O relatório revela que a grande maioria dos
cuidadores está profundamente preocupada com o futuro a longo prazo da criança
com autismo (79%). A preocupação, inclusive, ultrapassa barreiras geográficas,
etárias e de renda. Sobre as condições de saúde mental e física e do dia a dia
das pessoas autistas, 49% afirmam que possuem alguma doença crônica ou
secundária que foi identificada junto ao diagnóstico de Transtorno de Espectro
Autista (TEA), e 50% afirmam não ter acesso a recursos e suportes adequados para
as suas necessidades.
Segundo a literatura científica, a saúde da
pessoa autista é mais vulnerável que da população em geral, sobretudo em
doenças comuns como questões gastrointestinais (16%), doenças respiratórias
(10%) e obesidade (6%), que aparecem nessa ordem entre as mais prevalentes em
autistas.
As outras duas principais dificuldades
citadas pelos cuidadores no estudo são: arcar com os custos do tratamento (73%)
e encontrar tempo para descanso e para cuidar de si mesmo (68%). O alinhamento
entre os sistemas de saúde e educação é imprescindível, com a capacitação de
pessoas com autismo. É fundamental rever práticas como terapias intensivas e
salas de aula separadas, pois essas não promovem a autonomia desejada, mesmo
que seja uma abordagem bem intencionada.
Fato é que o aumento no diagnóstico de
pessoas com autismo se deve, em grande parte, aos avanços da ciência, que tem
se dedicado ao estudo e à compreensão desse transtorno. Além disso, graças aos
progressos científicos, informações relacionadas ao Transtorno do Espectro
Autista tornaram-se mais acessíveis.
Mas permanece a incerteza sobre o futuro a
longo prazo das crianças autistas, que passa por diversos aspectos, como
desenvolvimento do indivíduo, inclusão, como lidar com comportamentos
desafiadores e apoio emocional, entre outros. Por isso, as intervenções
multidisciplinares e a orientação parental são fundamentais nesse aspecto. Além
disso, o setor de saúde deve ser ativo, com o objetivo de melhorar a qualidade
de vida de crianças autistas e suas famílias. Se a sociedade não estiver
disposta a olhar para o autismo como uma questão social ampla, de nada ou quase
nada vai adiantar o esforço dos cuidadores, também merecedores de todo o
cuidado.
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