O Estado de S. Paulo
Fosse o partido irrelevante, a esquizofrenia entre o que prega e pratica no Brasil e as posições que defende no âmbito internacional seria assunto interno da sigla. Não sendo, o tema é de interesse nacional
A nota em que o PT felicita Vladimir Putin pela sua vitoriosa reeleição à presidência da Rússia é uma das mais infames da história do partido. O texto é efusivo. Mostra contentamento com o “feito histórico”, ressalta o “expressivo resultado” e termina com “calorosas saudações”. Desconheceriam os dirigentes do PT as condições de coerção em que se realizaram as eleições russas, a brutalidade repressiva sobre a oposição, os assassinatos e prisões de opositores e jornalistas independentes? Esqueceram-se de que o partido nasceu na luta contra a ditadura militar no Brasil, quando muitos dos que viriam a criá-lo sofreram arbitrariedades semelhantes?
Infame do ponto de vista moral, a nota é
politicamente inepta. O PT colhe simpatia e votos entre setores da sociedade
civil engajados em causas que a Rússia criminaliza. A lei russa prevê pena de
prisão para quem exibir símbolos do movimento LGBTQIA+. Para Putin, a igualdade
de gêneros destrói os valores da família tradicional. A aliança entre o Kremlin
e a Igreja Ortodoxa russa lembra os tempos do czarismo.
Além de afrontar parte significativa do
eleitorado simpático ao partido, a infame nota afasta eleitores de centro que
votaram em Lula nas eleições presidenciais passadas. Desconheceriam os
dirigentes do PT que esses eleitores foram decisivos para que o atual
presidente derrotasse Bolsonaro numa eleição decidida por margem ínfima de
votos? Suporiam que o conjunto da obra do partido no apoio a ditaduras amigas
não terá peso em eleições futuras? Não se dariam conta de que o apoio a Putin
reforça a paranoia, fomentada pela extrema direita, de que o PT na verdade quer
implantar o comunismo no País? Não importa que Putin seja hoje um ídolo da
direita reacionária. No mundo da pós-verdade e das fake news,a Rússia continua
a ser vermelha como a União Soviética.
A nota infame é mais um sintoma de um partido
com a bússola moral e política avariada, incapaz de autocrítica,
intelectualmente esterilizado, pronto a seguir e ecoar o que seu líder máximo
disser. Vista dessa perspectiva, a nota não discrepa da linha dominante da
política externa do atual governo, em especial quando o presidente Lula a
manifesta de forma espontânea, à margem do cuidado profissional do Itamaraty.
Nem sempre foi assim. Para comprová-lo, basta
visitar o site da Fundação Perseu Abramo, ligada ao partido, que guarda uma
longa série da revista Teoria e Debate. Entre os anos finais da década de 1980
e o início da década seguinte, intelectuais e dirigentes partidários discutiram
as causas e possíveis consequências do fim do socialismo real com honestidade
intelectual, sem medo do dissenso. Nas páginas da revista, não faltam críticas
à “experiência socialista” na União Soviética e na China.
Ao nascer, em 1980, o PT introduziu uma nota
dissonante e promissora no campo da esquerda brasileira. Tomou distância das
pátrias-mães do socialismo real e ganhou maior autonomia de pensamento. Partiu
em busca de um socialismo novo, que incorporasse a democracia e desse lugar a
cooperativas e pequenas e médias propriedades privadas. A procura pelo novo
tropeçou em muitos obstáculos. O partido não queria abdicar do socialismo e
rejeitava assumir uma identidade social-democrata, por não aceitar reformas liberais
que a social-democracia europeia passava a incorporar em sua agenda. Dilema
difícil para um partido de esquerda, ainda em construção: como atualizar-se sem
perder a identidade? O PT o resolveu apenas parcialmente. De todo modo, apesar
do inconcluso debate sobre o socialismo, o partido abraçou a democracia
representativa e ajudou a reerguê-la no Brasil em bases sociais e políticas
mais inclusivas.
O dilema mal resolvido, porém, não
desapareceu. Ressurgiu com uma visível atração pelo capitalismo de Estado na
China e simpática ambivalência pela Rússia de Putin, países onde a democracia e
os direitos humanos não têm vez. Detalhe
menor diante do que realmente importaria: a
contraposição ao imperialismo americano, a mesma justificativa para apoiar
ditaduras amigas na América Latina.
Salta aos olhos a esquizofrenia entre o que o
partido prega e pratica no Brasil e as posições que defende no âmbito
internacional. Aqui, a força das instituições democráticas, em geral, e a
lógica eleitoral, em particular, levaram o PT a moderar sua agenda. O partido
abandonou na prática qualquer aspiração socialista, como ocorreu com todos os
partidos social-democratas europeus, mas sem levar às últimas consequências a
incorporação da democracia como valor universal. Interrompido o debate interno,
velhas ideias autoritárias encontraram seu lugar na face externa do partido.
Fosse o PT irrelevante, a esquizofrenia seria
um assunto interno do partido. Não sendo, o tema é de interesse nacional,
sobretudo quando o partido tem a Presidência da República e influência na
política externa do País. Esta deve ser realista, mas não pode ser antagônica
aos princípios e valores que defendemos como nação democrática.
*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP.
Um comentário:
Disse tudo,apoiado.
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