Folha de S. Paulo
Desigualdade, violência e ineficiência se
entrincheiraram com o golpe de 1964
A ditadura de
1964-1985 foi de mortos,
desaparecidos, tortura, estupro,
exílio, censura, propaganda parafascista, imposição militar de
brucutus-presidentes, eleições fictícias, fraudadas ou muito limitadas. A
grande massa de analfabetos não votava nem ao menos no elenco de candidatos
autorizado pelos brucutus, a casta militar ignorante, bruta e ignara até hoje.
Menos se recorda que foi um período de repressão
de sindicatos, de movimentos sociais, em particular os populares; de
repressão salarial, de seguros sociais limitados e que excluíam os mais pobres.
Quase pouco se nota, na conversa mais comum,
que a ditadura produziu uma sociedade desastrosa, mais do que um desastre
social. Por um
tempo disfarçada por taxas de crescimento econômico altíssimas, a ruína
perdurou.
O que é uma sociedade desastrosa? Um exemplo muito claro são as grandes cidades, embora cidades médias mimetizem o arranjo perverso das metrópoles.
São monstros praticamente inadministráveis. É
impossível reformá-las sem grande custo econômico e sem transformação social
forte, em um esforço de décadas. São a essência da desigualdade de renda, de
patrimônio (propriedade imobiliária), de acesso a serviços públicos, do
racismo. O pobre é discriminado até no uso da rua, o que se evidencia no
transporte público ruim e nas ruas tomadas por carros.
A grande cidade brasileira é resultado de uma
urbanização desastrosa. Por um lado, até meados do século 20, havia uma grande
população largada no campo, sem terra, sem escola, sem saúde ou mesmo sem voto.
Não tivemos reforma
agrária quando isso poderia provocar transformação socioeconômica
profunda: multiplicação do número de proprietários, criação de meios de
subsistência que poderiam dar pão ao povo enquanto se educavam crianças e
jovens, com algum atendimento de saúde, e melhora na distribuição espacial da
população.
Por outro lado, a industrialização foi
limitada. A partir dos anos 1970, não absorvia o êxodo dos desesperados da
miséria rural (e menos ainda depois dos anos 1980 e 1990, com o enxugamento
tecnológico do emprego industrial).
A ditadura sobreveio como um modo extremo ou
final de impedir esses mínimos progressos: reforma agrária, aceleração da
oferta de escola, de direito a voto etc. Extremo, pois a oposição à reforma
social é sempiterna no Brasil.
O debate político das reformas possíveis foi
interditado nos 20 anos de domínio dos brucutus e de seus beneficiários civis,
aquela "burguesia nacional" com a qual a esquerda tanto se preocupa.
A população rural excedente, como se dizia,
lotou uma periferia sem casa decente, sem saneamento,
sem luz, sem escola. A saúde pública não
era universal (não havia SUS). Esse povo
vivia de emprego mal pago em serviços ou de subemprego, se tanto. A partir dos
anos 1970, mais e mais ficaram sujeitas à violência e à organização do crime. A
partir dos anos 1970, parte desse povo cria as igrejas
neopentecostais.
É fácil perceber que o Brasil de agora se
formou também na grande aglomeração dos deserdados da sorte rural, na
urbanização selvagem.
A ditadura fez muito mais pelo atraso. Criou
um sistema em que a "burguesia nacional" vivia de rendas, de
proteções contra a concorrência externa (por vezes, também doméstica), de
estatais ineficientes, de bloqueios de importação de tecnologia. Criou um
sistema de baixa produtividade e ajudou a enraizar o protecionismo. Alimentou a
inflação, que se
tornou hiper nos primeiros anos da democracia, sob políticas populistas e
doidivanas. A estabilização econômica foi um processo que levou quase 15 anos,
de 1985 a 1999.
O desastre social brasileiro se entrincheirou
entre 1964 e 1985. Parte do povo continua morta e desaparecida sob essa ruína
duradoura.
Um comentário:
Verdade.
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