sábado, 8 de junho de 2024

Eduardo Affonso - O dia seguinte

O Globo

Ao contrário das vítimas, podemos nos desconectar ao fim do dia, mudar de canal

Depois da tempestade — e antes mesmo da bonança —, costuma vir o esquecimento. As águas ainda não baixaram por completo, e o Rio Grande do Sul já não rende mais manchetes. Nesta sexta-feira, 7 de junho de 2024, não havia na primeira página da Folha ou do Estadão qualquer menção à tragédia dos gaúchos. No GLOBO, apenas uma pequena chamada.

Em menos de 40 dias, o desastre ambiental que afetou 475 municípios, desalojou mais de meio milhão de pessoas, matou 172 e deixou 42 desaparecidas — além de arrasar comunidades inteiras — já se recolheu às páginas internas dos três maiores jornais do país. Foi substituído pelo imposto das blusinhas e o foguetão do Musk, pela condenação de Trump e o perdão à rachadinha do Janones, pelo crescimento do PIB e a baixa da taxa de desemprego, pela PEC das Praias e o ‘algoritmo do ódio’, pelas eleições no México e na Índia, pelas derrotas de Lula e os ataques a Gaza. Vida que segue.

Menos para quem perdeu tudo. Para estes, a vida parou — e será preciso mais que reconstruir pontes, erguer bairros provisórios, fornecer auxílio emergencial. Recomeçar do zero, financeira e emocionalmente, não é hoje, para milhares de pessoas, apenas força de expressão. Quanto a nós — que acompanhamos tudo a seco e a salvo, nos emocionando com os resgates e nos solidarizando por meio de ações concretas (ou bem-intencionados clichês nas redes sociais) —, nós vamos nos cansando de sofrer com a dor alheia, num efeito colateral (e natural) da superexposição.

Foi tudo gráfico demais, intenso demais — a água barrenta tomando as casas, as cidades submersas, os salvamentos transmitidos em tempo real. Mas, ao contrário das vítimas, podemos nos desconectar ao fim do dia, virar a página, mudar de canal — e as coisas à nossa volta continuam sendo o que sempre foram, não se tornaram lixo acumulado nas ruas.

Em psicologia, há o conceito de “alagamento”. É quando somos expostos a uma quantidade tão esmagadora de estímulos que se torna difícil processar tudo. O resultado pode ser terapêutico (a cura de uma fobia, pela redução da resposta ao medo) ou o embotamento da percepção (como mecanismo de defesa). Estamos alagados, querendo voltar à programação normal, justamente quando emergem os maiores desafios, e a mobilização deveria ser redobrada.

É preciso que a reconstrução seja rápida e planejada, com soluções definitivas e sustentáveis, para que a economia se recupere logo, e o súbito empobrecimento da população comece a ser revertido. É preciso atualizar as leis ambientais — as condicionantes agora são outras. E, mais que nunca, fiscalizar o uso dos recursos públicos.

O governo federal tem se empenhado em desmontar todas as estruturas de combate à corrupção e ao aparelhamento do Estado. O cenário de devastação é perfeito para o expediente das “ações emergenciais” (pouco transparentes) e para decisões politiqueiras, como a importação de arroz — a ser vendido a preço subsidiado, com mal disfarçada propaganda na embalagem.

Continuam as mortes (agora por leptospirose), mas o evento não é mais midiático. Já passaram os 15 minutos da primeira-dama exultante pelo resgate do cavalo Caramelo (aquele que foi égua por um dia) e do ex-primeiro-filho se exibindo em vídeo promocional, de jet-ski.

O Rio Grande do Sul pode ser uma notícia velha ou um ponto de virada. A escolha é nossa.

 

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