Correio Braziliense
"Foi imediata a reação contrária da
opinião pública, pelas redes sociais e nas ruas, à tentativa de criminalizar o
aborto de crianças vítimas de estupro com penas de até 20 anos", observa o
jornalista
Prêmio Nobel de Literatura de 2022, recebido
aos 82 anos, a escritora francesa Annie Ernaux tinha 23 anos, em 1963, quando
engravidou do namorado. Um relacionamento recente, sem muitas expectativas.
Jovem universitária, de repente sua vida virou de ponta-cabeça. Sem poder
contar para sua família, que vivia numa pequena cidade conservadora do interior
da França, tomou a dramática decisão de fazer um aborto.
Seu livro O acontecimento (Fósforo
Editora), tradução de Isadora de Araújo Pontes, relata sua difícil e solitária
trajetória em busca de um aborto, que à época era ilegal na França.
Annie Ernaux levou 30 anos para relatar essa história, já escritora consagrada, com uma obra literária toda pautada por forte conteúdo autobiográfico. "Faz uma semana que comecei esta narrativa, sem nenhuma certeza de continuá-la. Só queria testar meu desejo de escrever sobre isso", registrou em seu diário. O peso do domínio masculino sobre o corpo feminino transborda no texto, que todo homem deveria ler. "Se eu não relatar essa experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando do lado da dominação masculina do mundo".
Médicos tentaram dissuadi-la da decisão.
Enfrentou o moralismo até mesmo entre as amigas. Seu texto é direto e chocante:
"Tornou-se uma coisa sem forma que avançava dentro de mim e era preciso
destruir a todo custo". Ela narra, detalhadamente, seu encontro com a
"fazedora de anjos" e a dramática passagem por um hospital, com risco
de morte, após o aborto clandestino, onde houve violência médica e o julgamento
moral por sua decisão.
Essa resenha minimalista do livro de Ernaux
tem a ver com a votação sobre a criminalização do aborto por crianças vítimas
de estupro, após 22 semanas, cuja urgência foi aprovada pela Câmara, na semana
passada. Conduzida pelo presidente da Casa, deputado
Arthur Lira (PP-AL), em acordo com os deputados de extrema direita e
evangélicos, durou apenas 24s. Na votação, houve muita hipocrisia e covardia,
que são características do machismo.
Vida privada
Foi imediata a reação contrária da opinião
pública, pelas redes sociais, à tentativa de criminalizar o aborto de crianças
vítimas de estupro com penas de até 20 anos, o dobro da prevista para o
estuprador. No dia seguinte, milhares de mulheres protestaram nas ruas e Lira
foi "demonizado". O presidente da Câmara não levou em conta, assim
como seus aliados, que o aborto é um assunto da vida privada, segredo guardado
a sete chaves, além de um problema de saúde pública.
É rara a família que não tenha passado por
esse trauma. O aborto substituiu a virgindade como tabu no ideário cristão da
família unicelular patriarcal, que se sente ameaçada pela revolução dos
costumes, principalmente da liberdade sexual — porém, mesmo assim, é praticado
quando necessário. Atualmente, a legislação permite o aborto ou a interrupção
de gravidez em casos em que a gestação decorre de estupro, coloca em risco a
vida da mãe e de bebês anencefálicos. Não está previsto um tempo máximo para a
gestação.
Essa legislação protege as mulheres de mais
baixa renda, que recorrem aos serviços de saúde pública quando cometem aborto
induzido e correm risco de vida. A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2021
mostra que uma em cada sete mulheres, com idade próxima aos 40 anos, já fez
pelo menos um aborto no Brasil. O levantamento foi realizado em novembro de
2021, ouviu 2 mil mulheres em 125 municípios.
Mais da metade (52%) do total de mulheres que
abortou tinha 19 anos de idade ou menos, quando fez seu primeiro aborto. Desse
contingente (abaixo de 19 anos), 46% eram adolescentes entre 16 e 19 anos, e 6%
meninas entre 12 e 14 anos. Pela legislação, praticar sexo ou atos libidinosos
com menor de 14 anos é considerado crime de estupro de vulnerável,
independentemente de haver consentimento da criança, sob pena de prisão de oito
a 15 anos.
Em 2021, 21% das mulheres que abortaram
realizaram um segundo procedimento, chamado aborto de repetição. Entre elas,
estão predominantemente as mulheres negras. Parte das entrevistadas (39%) usou
medicamento para interromper a gestação. A pesquisa cita que o medicamento mais
usado é indicado para prevenção e tratamento da úlcera gástrica; e 43% das
mulheres foram hospitalizadas para finalizar o aborto. Entretanto, o uso de
misoprostal, cuja venda é proibida sem receita médica, reduziu os casos de
mortalidade nos abortos induzidos.
"Temos relatos traumáticos de
perseguição, convocação da polícia, mulheres algemadas nos hospitais. Então, há
impacto na saúde pública pela ocupação de leitos, na saúde das mulheres porque,
por alguma razão, utilizaram medicamentos inseguros, indevidos ou foram para a
clandestinidade em clínicas inseguras, ou porque não têm a informação sobre
como é um aborto. Por isso, procuram os hospitais", explica Débora Diniz,
antropóloga e uma das autoras do estudo.
3 comentários:
Impressionante como que nas reportagens se desconsidera que a lei hoje já permite o aborto por estupro até 22 semanas de gestação ou seja cinco meses e meio
A partir dessa idade gestacional a criança já está em condições de nascer e viver, já seria uma pessoa plena que teria que ser morta , no mínimo uma desumanidade cruel,
daí toda essa situação que levou a publicar uma declaração oficial da CNBB que manifesta o apoio ao PL contra o aborto , que está tramitando na Câmara dos Deputados , com o lema :
“A mãe e a criança devem viver”
Está havendo um exagero e uma falsidade ideológica apelando para o sensacionalismo emocional sobre a discussão do tema
Nessa discussão ninguém fala na posição Que começou todo esse problema que foi uma liminar do STF permitindo a morte de crianças depois de 22 semanas , o aborto
A pergunta que não pode calar é com o que fundamento científico Eles tomaram essa posição ?
Hoje o STF, pela sua composição assumiu um viés nitidamente de esquerda , pautando todas as questões de costumes Envolvendo aborto , droga e tratamento químico para adolescentes em transição de gênero que somente o congresso poderia Legislar
Excelente e informativa coluna.
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