quarta-feira, 5 de junho de 2024

Nicolau da Rocha Cavalcanti - O Brasil invisível aos olhos da esquerda

O Estado de S. Paulo

Sem compreender o país que governa, o exercício do poder torna-se fonte de perplexidade, confusão, divisão e ineficácia

A Presidência de Jair Bolsonaro fez muito mal ao País (cf. artigo A machadada totalitária de Bolsonaro, 13/10/2022). Mas a verdade é que, mesmo após o término do seu governo, mesmo depois de a Justiça Eleitoral declará-lo inelegível, continuamos enredados na irracionalidade, no acirramento de ânimos, na ausência de diálogo sobre os temas fundamentais do País.

É possível – trata-se de uma escolha – continuar responsabilizando Jair Bolsonaro pelo atual estado de coisas. Afinal, ele causou danos profundos e duradouros na política, na administração pública, no ambiente informativo, no imaginário coletivo. Mas, a meu ver, essa escolha, além de diversionista, é improdutiva. É preciso exigir de quem está agora no poder, nas várias esferas, a capacidade de reagir a tudo isso. Nessa matéria, a responsabilidade recai especialmente sobre Luiz Inácio Lula da Silva.

Podem ser citadas várias deficiências do governo federal no enfrentamento da crise cívica, política e econômica do País. Destaco o seguinte aspecto, que me parece um denominador comum das lideranças de esquerda: uma incompreensão profunda sobre o Brasil atual. Além de gerar distorções e inconsistências em suas propostas, o desconhecimento sobre o País é obstáculo para a realização de políticas públicas politicamente delicadas, como a redução do superencarceramento e uma nova estratégia para as drogas. Há um descolamento da realidade, inviabilizando o diálogo com a sociedade. Tudo fica fragilizado e desorientado.

A crítica aqui ao governo Lula não é por ele supostamente estar muito à esquerda, como se seu grande desafio fosse aproximar-se do centro. O ponto é anterior, mais básico. Ele não está conseguindo enxergar o Brasil, o que o incapacita de propor e implementar as políticas públicas necessárias.

Na incompreensão da esquerda sobre o Brasil, três áreas chamam a atenção: o mundo rural (não apenas o “agronegócio”), o trabalho contemporâneo e a diversidade cultural da sociedade brasileira.

É evidente que o campo está mais à direita no espectro político. Mas é um erro achar que se trata de mero fenômeno eleitoral, a exigir algumas medidas do governo federal ou mais verbas para o setor. Há um novo Brasil – e não apenas no Centro-Oeste, mas também no Nordeste, no Sul, no Sudeste, no Norte –, que precisa ser conhecido, respeitado, admirado, promovido. Há nele também muito a ser corrigido e melhorado, mas isso será impossível se o governo estiver distante ou menosprezar o setor.

A agropecuária brasileira não é sinônimo de latifúndio, de atraso, de analfabetismo, de ignorância climática. Há preocupação com o meio ambiente e respeito à legislação. Há uso intensivo de alta tecnologia, em interação constante com as melhores práticas internacionais. O campo brasileiro exporta conhecimento e soluções sustentáveis para muitos países. Há novas cidades, fruto do desenvolvimento agrícola, com ótima qualidade de vida. Há famílias jovens, empreendedoras, com garra e profundo amor ao País. Seja qual for sua orientação política, é preciso conhecê-las, identificar suas necessidades, ouvir suas aspirações.

Conhecer o campo não é apenas ir à Agrishow. Não é tarefa esporádica, não é atividade midiática. É estar próximo do Brasil e do seu povo. É cultivar um olhar abrangente sobre o País, o que certamente evitaria muitos equívocos.

Por sua trajetória de vida, Lula conhece como poucos a dinâmica laboral dos anos 1970 e 1980 do ABC paulista. Mas não foi esse o modelo que prevaleceu no Brasil e no mundo. Há novos cenários, com mais incertezas, novos atores envolvidos, novas angústias, novas demandas, novas tensões.

Compreender o mundo do trabalho é condição indispensável para reduzir as desigualdades, para conduzir bem a política econômica, para melhorar as taxas de emprego, para promover o ambiente de negócios. Mas não é só isso. O trabalho é aspecto fundamental da vida de cada pessoa. Configura sua identidade e é o locus primário de socialização. Um governo que desconhece o trabalho contemporâneo está radicalmente perdido – e isso é percebido pela população.

Por último, mas não menos importante, está a diversidade de aspirações presentes na sociedade brasileira. Há quem fale que Lula precisa de um governo ideologicamente amplo em razão de ter vencido, em 2022, por pequena margem de votos. Nas sociedades plurais, o governante, tenha vencido por muito ou por pouco, deve ser capaz de compreender a variedade de aspirações da população. No entanto, o governo Lula é pouquíssimo plural, com uma visão unívoca de quem é o brasileiro. Sua distância com a população evangélica é apenas a ponta do iceberg.

O primeiro dever de um governante é conhecer a Constituição, para saber o sentido do cargo, seus deveres e seu âmbito de atuação. O segundo é compreender o País – ou o Estado ou o município – que governa. Sem isso, o exercício do poder torna-se fonte de perplexidade, confusão, divisão e ineficácia. Há de se ter muito cuidado. A democracia brasileira não pode se dar ao luxo de flertar com a disfuncionalidade.

 

Um comentário:

Daniel disse...

Excelente texto! Lula e o PT deveriam lê-lo cuidadosamente e entenderem o que está sendo dito aí. E partirem pra praticar o que ele sugere. Lula pediu críticas pra melhorar seu governo. A análise do colunista é muito boa e lógica!