segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Virada de ano num país que não muda – Fernando Gabeira

O Globo

Projeto de reduzir custos do governo revelou como é difícil o gasto racional; estamos longe de um nível necessário de austeridade

A virada do ano mexe com todos. Creio, no entanto, que para os mais velhos não há grandes planos. Apenas a gratidão por sobreviver. Tendemos a cortar o tempo em fatias menores: as tardes de maio, manhãs de domingo, a hora do crepúsculo, algumas auroras, o momento do adeus.

Comprei um aplicativo de gravação que registra a voz, estampa o texto e ainda dá um título. Uso para mandar alguns roteiros de estudo para minha filha, que viaja muito e gosta de estar em dia com alguns temas, como a crise do Oriente Médio, presente em muitas conversas.

O título de uma gravação despretensiosa diz muito para mim: “A arte de adiar a morte, as histórias de Sherazade”. Personagem fascinante das Mil e Uma Noites, ela usava sua habilidade de contar histórias como um artifício para adiar sua execução.

Cada noite, Sherazade começava uma nova narrativa envolvente, cheia de reviravoltas e personagens intrigantes que cativavam a atenção do rei. A estratégia a mantinha viva por mais um dia, mas transformava a proximidade da morte para explorar a condição humana. Contar histórias, conclui a anotação, é um ato de resistência e criatividade diante da morte certa.

Creio que Octavio Paz disse alguma coisa parecida: a poesia como triunfo sobre a morte.

Às vezes somos obrigados a contar a história real que se desdobra no cotidiano do país. Nem sempre temos estômago para vivê-la, e mesmo interpretá-la se transforma em algo indigesto.

O fim de ano foi marcado por uma crise de almanaque. Deputados querem dinheiro das emendas, mas fogem dos quesitos transparência e rastreabilidade. Isso é indispensável quando se usam recursos públicos. O Supremo tenta resistir desde o famoso orçamento secreto. E eles driblam o Supremo, às vezes com a cumplicidade do próprio governo, que não pode bater de frente com o Congresso.

O resultado dessa farsa prolongada é ver dinheiro literalmente jogado pela janela, aviões transportando fortunas em espécie, cidades onde todo mundo extrai o dente, como Pedreiras (MA): 14 dentes extraídos por habitante.

Tenho dificuldade em achar um horizonte. O recente projeto de reduzir custos do governo revelou como é difícil o gasto racional, como estamos longe de um nível necessário de austeridade. As cidades de Maranhão e Tocantins ligadas pela ponte que caiu gastaram R$ 36 milhões em shows, com suas emendas.

O Supremo não consegue deter a prática, porque ainda há certa indiferença social, e o Judiciário é parte do problema com seus supersalários. Uma desembargadora de Mato Grosso, que ganha R$ 130 mil mensais, deu um abono de R$ 10 mil aos funcionários do tribunal. Abono peru. O sacrifício sempre recai sobre os mais pobres. Supersalários e subsídios ficam para depois.

Todos os Poderes gastam muito. Opulência e ostentação são fatores culturais de peso. Talvez por isso Lutero tenha conduzido a cisão na Igreja Católica, que tinha prédios luxuosos, sacerdotes ricos e vendia indulgências, como se o perdão tivesse um preço.

Não importa tanto a raiz cultural, isso é injusto num país com tantas necessidades. Uma coisa é narrar e contar histórias para adiar a morte, algo inerente à condição humana. Outra é narrar para descrever as injustiças cotidianas, num país ainda tão desigual. Tudo é resistência, mas às vezes a repetição cansa.

Quem sabe os eleitores não percebam esse enredo e nos libertem para contarmos apenas as histórias essenciais?

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