O Globo
Projeto de reduzir custos do governo revelou
como é difícil o gasto racional; estamos longe de um nível necessário de
austeridade
A virada do ano mexe com todos. Creio, no
entanto, que para os mais velhos não há grandes planos. Apenas a gratidão por
sobreviver. Tendemos a cortar o tempo em fatias menores: as tardes de maio,
manhãs de domingo, a hora do crepúsculo, algumas auroras, o momento do adeus.
Comprei um aplicativo de gravação que
registra a voz, estampa o texto e ainda dá um título. Uso para mandar alguns
roteiros de estudo para minha filha, que viaja muito e gosta de estar em dia
com alguns temas, como a crise do Oriente Médio, presente em muitas conversas.
O título de uma gravação despretensiosa diz muito para mim: “A arte de adiar a morte, as histórias de Sherazade”. Personagem fascinante das Mil e Uma Noites, ela usava sua habilidade de contar histórias como um artifício para adiar sua execução.
Cada noite, Sherazade começava uma nova
narrativa envolvente, cheia de reviravoltas e personagens intrigantes que
cativavam a atenção do rei. A estratégia a mantinha viva por mais um dia, mas
transformava a proximidade da morte para explorar a condição humana. Contar
histórias, conclui a anotação, é um ato de resistência e criatividade diante da
morte certa.
Creio que Octavio Paz disse alguma coisa
parecida: a poesia como triunfo sobre a morte.
Às vezes somos obrigados a contar a história
real que se desdobra no cotidiano do país. Nem sempre temos estômago para
vivê-la, e mesmo interpretá-la se transforma em algo indigesto.
O fim de ano foi marcado por uma crise de
almanaque. Deputados querem dinheiro das emendas, mas fogem dos quesitos
transparência e rastreabilidade. Isso é indispensável quando se usam recursos
públicos. O Supremo tenta resistir desde o famoso orçamento secreto. E eles
driblam o Supremo, às vezes com a cumplicidade do próprio governo, que não pode
bater de frente com o Congresso.
O resultado dessa farsa prolongada é ver
dinheiro literalmente jogado pela janela, aviões transportando fortunas em
espécie, cidades onde todo mundo extrai o dente, como Pedreiras
(MA): 14 dentes extraídos por habitante.
Tenho dificuldade em achar um horizonte. O
recente projeto de reduzir custos do governo revelou como é difícil o gasto
racional, como estamos longe de um nível necessário de austeridade. As cidades
de Maranhão e Tocantins ligadas
pela ponte que caiu gastaram R$ 36 milhões em shows, com suas emendas.
O Supremo não consegue deter a prática,
porque ainda há certa indiferença social, e o Judiciário é parte do problema
com seus supersalários. Uma desembargadora de Mato Grosso,
que ganha R$ 130 mil mensais, deu um abono de R$ 10 mil aos funcionários do
tribunal. Abono peru. O sacrifício sempre recai sobre os mais pobres.
Supersalários e subsídios ficam para depois.
Todos os Poderes gastam muito. Opulência e
ostentação são fatores culturais de peso. Talvez por isso Lutero tenha
conduzido a cisão na Igreja Católica, que tinha prédios luxuosos, sacerdotes
ricos e vendia indulgências, como se o perdão tivesse um preço.
Não importa tanto a raiz cultural, isso é
injusto num país com tantas necessidades. Uma coisa é narrar e contar histórias
para adiar a morte, algo inerente à condição humana. Outra é narrar para
descrever as injustiças cotidianas, num país ainda tão desigual. Tudo é
resistência, mas às vezes a repetição cansa.
Quem sabe os eleitores não percebam esse
enredo e nos libertem para contarmos apenas as histórias essenciais?
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