sábado, 26 de julho de 2025

Que soberania? - Oscar Vilhena Vieira

Folha de S. Paulo

Assim como a sociedade brasileira e suas instituições têm sabido se defender dos ataques da extrema direita, saberão se proteger agora dos traidores da pátria

Nos últimos dias, em face das investidas do presidente norte-americano contra o Poder Judiciário brasileiro, muito tem se falado em soberania no Brasil. Mas de que soberania estamos falando?

A soberania nada mais é do que o poder de um povo de determinar o seu próprio destino, de acordo com suas leis e suas instituições.

Mas este não era o seu sentido original. O conceito de soberania foi incorporado à linguagem jurídica e política no final da idade média, para designar a autoridade absoluta e incontrastável da monarquia sobre seus súditos, em um determinado território. No plano internacional, o termo serviu para indicar a independência de um Estado em relação às demais nações.

Ao longo dos séculos, o conceito de soberania foi sendo profundamente reformulado. Rousseau subverteu o conceito ao retirar a soberania das mãos do príncipe e transferi-la aos cidadãos. A ideia de soberania popular, por ele proposta, reivindica que o poder apenas seria legítimo quando representasse uma fiel expressão da vontade popular.

O conceito de soberania sofreria uma reformulação ainda mais radical, com a ascensão dos regimes constitucionais, estruturados a partir de um sistema de separação de poderes e pela garantia dos direitos fundamentais. Neste momento, o conceito de soberania se afastou, por definitivo, da ideia de poder absoluto, passando a designar uma ordem política pautada na constituição e nos direitos fundamentais.

No plano internacional, no entanto, o conceito de soberania só entraria em declínio após a barbárie do holocausto, do colonialismo e a perspectiva de destruição total decorrente do desfecho da 2ª Guerra.

A criação de uma nova ordem internacional baseada na proibição da guerra, no reconhecimento dos direitos humanos, da autodeterminação dos povos, na cooperação e no respeito ao direito internacional domesticaram o conceito de soberania e, mais importante, abriram uma nova perspectiva civilizatória à humanidade.

Constituição de 1988 incorpora em seus primeiros artigos essa concepção humanista de soberania, ao reconhecer que "todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes ou diretamente, nos termos da Constituição"; que os Poderes devem ser "independentes e harmônicos"; que a República deve perseguir a "construção de uma sociedade livre, justa e solidária" o "desenvolvimento nacional", "reduzir as desigualdades" e "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação".

No plano internacional, a República Federativa do Brasil deve reger-se, entre outros, pelos princípios da "independência nacional", "prevalência dos direitos humanos", "não intervenção", "repúdio ao racismo e ao terrorismo" e "solução pacífica dos conflitos". O mesmo respeito que tem com as demais nações o Brasil exige para si.

Foi em defesa dessa concepção generosa, democrática e inclusiva de soberania, que centenas de organizações e milhares de pessoas, representando muitas outras, se manifestaram nesta última sexta-feira no histórico Largo de São Francisco.

Assim como a sociedade brasileira e suas instituições têm sabido se defender ao longo dos últimos anos dos ataques perpetrados pela extrema direita contra o Estado Democrático de Direito, saberão se proteger agora dos traidores da pátria, assim como daqueles que atentam contra a sua democrática soberania.

 

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