terça-feira, 1 de julho de 2008

GRAMSCI, 70 ANOS DEPOIS

GRAMSCI, 70 ANOS DEPOIS9
Gilvan Cavalcanti de Melo*
ESPECIAL PARA GRAMSCI E O BRASIL
ABRIL, 2007

“Seremos marxistas?
Existirão marxistas?
Tolice, só tu és imortal”.
**
(Gramsci)

Em 27 de abril de 1937, morria aos 46 anos, Antonio Gramsci, o mais importante, talvez o maior pensador da tradição marxista-ocidental do século passado. A morte o derrotou no instante em que conseguira a liberdade: dois dias antes recebera o documento com a declaração de que não havia mais qualquer medida de segurança em relação a ele, assinado pelo Juiz do Tribunal Especial de Roma. Foi preso por ordem de Mussolini, em 8 de novembro de 1926. No processo farsa, montado pelo Estado Fascista, o acusador pediu aos juizes sua condenação e diante de Gramsci, sentenciou: ‘é preciso impedir este cérebro de funcionar’. Condenaram-no é verdade mas, não conseguiram impedir que, de dentro da prisão, fosse escrita uma obra monumental.

Encarcerado fez com que sua inteligência penetrasse na densidade sombria da realidade. Recusou a vaidade demagógica de uns e o dogmatismo degenerado de outros. Não pensou em formular uma nova e original concepção da práxis. Só mais tarde manifestou a consciência do valor de sua produção intelectual. Ousou, de dentro do cárcere, na solidão e solitário politicamente, desafiar a ignorância e as banalidades stalinistas. Foi, também, por muito tempo negligenciado e desconsiderado, inclusive, por muitos companheiros os quais, deveriam tê-lo valorizado e amado mais intensamente. Em primeiro lugar se comovido por aquele homem frágil, sofredor e perseguido. Em segundo, admiração por sua coragem e combatividade. Em terceiro, por seu pensamento denso, profundo. Finalmente, por seus ensinamentos e visão inovadora sobre a filosofia de Marx.

Nada mais justo ao se completar 70 anos de sua morte recordar algumas contribuições daquele pensamento inovador na tradição de Marx.

Há uma controvérsia sobre o porquê da recusa de Gramsci em usar o termo materialismo ou marxismo. Parte de estudiosos lhe atribuem o fato como uma maneira de ultrapassar a rigidez da censura. Entretanto, é preciso ressaltar, que aqueles termos estavam relacionados a uma leitura economicista, dogmática e ortodoxa de Marx. O símbolo mais conhecido era o “Manual Ensaio Popular” de Nicolau Bukarin. Em defesa do novo conceito foi buscar o exemplo de Marx no prefácio de O Capital. Ali estava explicitado ‘dialética racional’ e ‘dialética mística’ em vez de dialética materialista e dialética idealista. O próprio Marx se recusava a se identificar com o materialismo vulgar.

Há outra convicção: o uso do termo filosofia da praxis foi consciente no sentido da revalorização da atividade cultural e da dimensão ético-política. Ao mesmo tempo em que travava uma batalha contra os dogmáticos, não deixou de considerar, também, que a ‘filosofia da praxis’ deveria reconquistar a força criadora da qual se apoderara o pensamento moderno, preconceituoso e desfavorável a priori, em relação a Marx: Bérgson, Sorel, Croce, Weber, Veblen, Freud, o Wiliam James e através de Spengler, também, Nietzsche.

Seria interessante relacionar a crítica que ele fez as duas correntes filosóficas existentes: uma chamada ortodoxa e outra eclética A primeira tendência era representada por Plekhanov, cujo ensaio mais conhecido era Os problemas fundamentais do marxismo. A obra não foi poupada por Gramsci, chamado-a de materialismo vulgar e típica do método positivista. A segunda, queria ligar a “filosofia da práxis” ao kantismo ou outras correntes não positivista e não materialistas, representada por Otto Bauer o qual chegou a afirmar que o marxismo poderia ser fundamentado e integrado por qualquer filosofia. Daí, a sua preocupação em colocar em circulação o pensamento de outro italiano: Antonio Labriola. Era o contra-ponto ao grupo intelectual alemão que exercia uma forte influência em determinada leitura de Marx, na Rússia. Por isso, Gramsci valorizava a idéia de Labriola de que a filosofia da práxis era independente de qualquer outra filosofia, sendo auto-suficiente.

Qual o núcleo central do pensamento gramsciano? A palavra chave era o homem como bloco histórico, categoria que ele adquiriu de Sorel e deu-lhe outra dimensão. Discutiu o tema e se contrapôs a teoria da dualidade, inclusive, com George Lukács. E, assim se expressou: “Deve-se estudar a posição do professor Lukács em face da filosofia da práxis. Lukács, ao que parece, afirma que só se pode falar de dialética para a história dos homens, não para a natureza. Pode estar equivocado e pode ter razão. Se sua afirmação pressupõe um dualismo entre a natureza e o homem, ele está equivocado porque cai em uma concepção da natureza própria da religião e da filosofia greco-cristã, bem como do idealismo, que realmente não consegue unificar e relacionar o homem e natureza mais do que verbalmente. Mas se a história humana deve ser concebida também como história da natureza (através também da história da ciência), como então a dialética pode ser destacada da natureza? Lukács, talvez, por reação às teorias barrocas do Ensaio Popular, caiu no erro oposto, em uma forma de idealismo”1.

Reafirmou sua concepção unitária do homem, quando escreveu: “É possível dizer que cada um transforma a si mesmo, se modifica, na medida em que transforma e modifica todo o conjunto de relações do qual ele é o ponto central. Neste sentido o verdadeiro filósofo é – e não pode deixar de ser - nada mais do que o político, isto é, o homem ativo que modifica o ambiente, entendido por ambiente o conjunto das relações de que o indivíduo faz parte. Se a própria individualidade é o conjunto destas relações, conquistar uma personalidade significa adquirir consciência destas relações, modificar a própria personalidade significa modificar o conjunto destas relações”2. Ai, também, está presente uma leitura antipragmática, uma reelaboração inovadora da teoria do conhecimento expressa por Marx na tese onze sobre Feuerbach: “Os filósofos de limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo”3. Isto é, o conceito unitário: conhecer a realidade e transformá-la.

O bloco histórico está presente na relação entre intelectuais e não intelectuais, através dos conceitos senso-comum/bom senso. Gramsci evidenciou que todos homens são filósofos, inconsciente e definiu os limites e as características dessa peculiaridade. Esta singularidade está contida em primeiro lugar, na própria linguagem, isto é, um conjunto de conceitos com conteúdos, ou seja, qualquer simples manifestação intelectual fica explicita uma concepção de mundo. Em segundo lugar, a religião popular, com todo o sistema de crenças, supertições, etc. E, encontrou a chave para unificar, criticamente, esse conjunto de filosofia.

Resolveu a questão de maneira muito original. Estabeleceu uma relação entre a passagem do saber ao compreender, ao sentir e vice-versa. E, simultaneamente, do sentir ao compreender, ao saber. Destacou que o popular sente, mas nem sempre compreende ou sabe. O intelectual sabe, mas nem sempre compreende e, em especial, sente. É indispensável, portanto, reconciliar senso-comum e bom-senso. Sem essa conexão entre intelectuais e a grande maioria da população não se faz política.

Essa relação unitária perpassa todo o trabalho e formação de outros conceitos e categorias. Está presente, também, no estudo da estrutura e superestrutura. Outro exemplo claro é quando ele se refere as “ondas” dos movimentos históricos: de um lado chamou a atenção para o exagero do economicismo ou do doutrinarismo pedante e, de outro lado, o limite extremo de ideologismo. Essa separação poderia levar a graves erros na arte política de construir a história presente e futura e dariam lugar a fórmulas infantis de otimismo e bobagens.

Outra contribuição importante: estabeleceu uma distinção metodológica de dois momentos para a análise de uma situação concreta, circunstância ou conjuntura: a) um momento unido à estrutura, objetiva, o grau de desenvolvimento das forças materiais de produção. A formação dos agrupamentos sociais, suas funções e posição na produção. Essa realidade permite investigar se uma determinada sociedade já existe as condições indispensáveis e suficientes para sua transformação; b) outro momento é a relação das forças política, avaliação do grau de homogeneidade, autoconsciência e de organização adquirido pelos diferentes grupos sociais. Na vida real, entretanto, considerou que estes momentos se confundiam reciprocamente.

E com base na análise de conjuntura procurou resolver duas questões apresentadas por Marx no prefácio à Crítica da Economia Política: a) “uma formação social nunca perece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais ela é suficientemente desenvolvida, e novas relações de produção mais adiantadas jamais tomarão o lugar, antes que suas condições materiais de existência tenham sido geradas no seio mesmo da velha sociedade”; b) é por isso que a humanidade só se propõe as tarefas que pode resolver, pois, se se considera mais atentamente, se chegará à conclusão de que a própria tarefa só aparece onde as condições materiais de sua solução já existem, ou, pelo menos, captadas no processo do seu devir”4. Na sua enorme pesquisa fragmentada apresentou e desenvolveu a categoria de revolução passiva. Inferiu-a dos dois princípios estabelecidos por Marx, no prefácio de 1859. Reportando-o à descrição daqueles dois momentos que podiam distinguir a situação concreta e o equilíbrio das forças com a máxima valorização do segundo momento5.

A chave bloco histórico serviu-lhe para resolver um falso problema da separação entre Estado/Sociedade Civil, separação que só existe metodologicamente. Mas, deixou muito bem explicitado que esta relação dialética exigia um reconhecimento do terreno nacional. Entretanto, ao analisar as formações sociais pouco desenvolvidas e comparando com as mais desenvolvidas chegou a uma conclusão importante: nas primeiras o Estado é tudo, a sociedade civil é primitiva, gelatinosa, sem consistência; nas segundas há entre o Estado e a sociedade civil uma relação de disputa, pendência e qualquer tremor ou oscilação do Estado, imediatamente, descobre-se uma poderosa estrutura da sociedade civil. O Estado é apenas um posto avançado, por trás do qual se situa uma poderosa rede de proteção blindada.

Dessa leitura reexaminou o conceito leniniano de hegemonia. E, entre os elementos força e consenso, deu ênfase aos ordenadores do sistema de hegemonia: a) as organizações e instituições políticas e culturais, nas quais esse sistema se materializou; b) os sujeitos, forças sociais e instituições que o construiu e se reproduziu. Mas, demonstrou, também, que os sistemas hegemônicos não eram eternos, mas históricos. Bem como, salientou os processos e possibilidades de se construir novas hegemonias político-morais.

Através de uma série de problemas examinados por Gramsci dentro do pensamento filosófico, no inicio da década 30, foi possível antecipar as novas contradições das sociedades modernas, suas complicações, crises econômicas e morais e a passagem do velho individualismo econômico para a economia programática, uma nova hegemonia. Vislumbrou as grandes transformações capitalistas. Com Americanismo e Fordismo ele demonstrou sua enorme capacidade de olhar o mundo além do seu tempo.

A mesma coerência unitária esteve presente na sua visão de partido político. Recusou um tipo de organização oriental, burocrática. Iniciou sua análise partindo do questionamento da necessidade histórica da sua existência e propunha algumas condições, entre elas a possibilidade de seu triunfo ou, pelos menos, em vias de alcançá-lo. Mas, para isso era necessária a unidade de três grupos de elementos: a) um elemento de homens comuns, cuja participação seja oferecida pela disciplina e fidelidade; b) o elemento principal de coesão, que unifique no campo nacional, torne eficiente e poderoso um conjunto de forças. Este grupo é dotado de determinadas premissas como criatividade, perspectiva e unido; c) um elemento médio, que articule o primeiro grupo com o segundo, os colocando em sólido contado intelectual e moral.

Seu pensamento avançava por fragmentos, abandonados logo em seguida e em outros casos aperfeiçoava-o por outros. Não era uma obra sistemática. Por isso, há estudiosos e especialistas de sua obra que tentam diversidades de interpretações: uns com matizes, formas e graus diferentes colocam-na no campo exclusivo do leninismo; outros interessados, fundamentalmente, nas inovações que ele introduziu nas análises das superestruturas; os terceiros que o preferem como o filósofo da sociedade industrial. A controvérsia é natural numa obra inconclusa.

O que é o homem? Era a grande questão para Gramsci. E destacou que esta é a primeira e principal pergunta da filosofia. E questionou: como respondê-la? Sua conclusão foi resumida em ritmo de novas perguntas, mais ou menos assim: o que o homem pode se tornar, se o homem pode controlar seu próprio destino, se ele pode se fazer, se ele pode criar sua própria vida? E, concluiu, portanto, o homem é um processo, exatamente, o processo de seus atos. Em suma, a humanidade se reflete em cada individualidade e é composta de distintos elementos: a) o individuo; b) os outros homens; c) a natureza6. Isto é, em outras palavras, o bloco histórico. Só metodologicamente é possível fragmentá-lo.

Não deixou de polemizar com o pensamento mais rigoroso e mais fecundo que formavam grandes correntes de opinião. Assim o faz quando estudou o conceito de classe política de Gaetano Mosca, relacionando-o com o conceito elite de Vilfredo Pareto. Foi Benedetto Croce seu principal interlocutor. O conjunto dos “Cadernos do Cárcere”, na verdade, é um combate em duas frentes: contra o pensamento especulativo e idealista (Croce) e a chamada ortodoxia vulgar e positivista do marxismo.

E, hoje, as categorias gramscianas são reconhecidas e estudadas, nos meios acadêmicos e políticos como instrumentos de análise da modernização conservadora brasileira e suas complexas superestruturas.

Sua vida pelo modo, lugar e tempo de sua concretização, poderia ser designada como a de um homem derrotado. Na ignorância de uma época fez iluminar a extraordinária força moral e o rigor intelectual do homem que, sem se deixar abater, fez de suas derrotas, novas fontes de energia para recomeçar e avançar. Suportou o seu destino, com coragem e sobriedade intelectual, sem concessões ao vulgar e patético, conservando sempre o controle racional dos sentimentos.

Diante disso como resistir à tentação de falar sobre Gramsci e sua obra tão rica, fecunda, dando-lhe, ao mesmo tempo, o papel de herói, no mundo cheio de vilões teóricos?

Referindo-se a Marx, Noberto Bobbio dizia que para garantir um lugar entre os clássicos, um pensador deve obter reconhecimento nestas três qualidades: a) deve ser considerado como tal intérprete da época em que viveu que não se possa prescindir de sua obra para conhecer o “espírito do tempo”; b) deve ser sempre atual, no sentido de que cada geração sinta necessidade de relê-lo e, relendo-o, de dedicar-lhe uma nova interpretação; c) deve ter elaborado categorias gerais de compreensão histórica das quais não se possa prescindir para interpretar uma realidade mesmo distinta daquela a partir da qual derivou essas categorias e à qual as aplicou7. Esta afirmação caberia, também para Gramsci?

Ninguém, hoje, duvida que deva ser considerado um clássico na história do pensamento.

Finalmente, nessa pequena homenagem, não poderia faltar um trecho de sua carta de 10 de maio de 1928, enviada para a mãe:”... Querida mamãe, gostaria muito de lhe abraçar bem apertado para que sentisse o quanto eu gosto de você e como gostaria de lhe consolar por esse desgosto que lhe dei, mas não podia agir de outro modo.A vida é assim, muito dura, e os filhos algumas vezes tem de dar grandes desgostos às suas mães, se querem conservar a sua honra e a sua dignidade de homens”8

NOTAS

9 Artigo publicado nos Portais Gramsci e o Brasil , La inisignia e na revista Política Democrática, nº 18 da Fundação Astrojildo Pereira/Brasília.
* Gilvan Cavalcanti de Melo (71 anos), membro efetivo dos Diretórios Nacional e Regional/RJ do PPS e do Conselho Editorial da revista Política Democrática.
** Gramsci se referia a Marx. Citado no artigo A reforma Gramsciana da Política de Valentino Gerratana, revista Presença nº 17 – nov.1991/março 1992, Rio de Janeiro.

1 Gramsci, Antonio – Concepção Dialética da História , pág. 173 , 3ª edição 1978 – Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.

2 Idem, pág.40

3 Marx, Karl – Tese sobre Feuerbach - Os Pensadores , pág. 53 , 2ª edição. 1978 – Abril Cultural

4 Marx, Karl – Para a Critica da Economia Polícia , Prefácio – Os Pensadores, pág. 130 2ª edição, 1978 – Abril Cultural

5 Vianna, Luiz Werneck - A Revolução Passiva – Iberismo e americanismo no Brasil , págs. 28/88 - Editora Revan, Rio de Janeiro, 1997

6 Gramsci, Antonio – Concepção Dialética da História, pág. 39 , 3ª edição 1978 - Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
7 Bobbio, Norberto – Teoria Geral da Política - A filosofia Política e as Lições dos Clássicos, pág. 114 - Editora Campus, Rio de Janeiro, 2000.

8 Fiori, Giuseppe – A vida de Antonio Gramsci, pág. 360 - Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1979.

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