O governo precisa fazer uma escolha: ou reduz a taxa de lucro dos investidores e instituições financeiras, ou muda a remuneração da poupança. Não é preciso ser adivinho para saber o que vai acontecer
Ontem, o sambista Ataulfo Alves, que era considerado por Ibrahim Sued um dos homens mais elegantes de sua época, completaria 100 anos. Mineiro que se juntou aos bambas do Estácio, são dele sambas que fazem sucesso até hoje, como Mulata Assanhada, Na Cadência do Samba, Leva meu Samba, Laranja Madura e Ai, que saudade da Amélia. Um de seus sambas, em parceria com Wilson Batista, foi a síntese musical da cooptação do movimento sindical por Getúlio Vargas, durante o Estado Novo. Intitulava-se O Bonde São Januário: “Quem trabalha é que tem razão/Eu digo e não tenho medo de errar/O bonde São Januário/Leva mais um operário:/Sou eu que vou trabalhar/Antigamente eu não tinha juízo/Mas resolvi garantir meu futuro/Vejam vocês:/Sou feliz, vivo muito bem/A boemia não dá camisa a ninguém/É, digo bem”.
Pois bem, desde a Era Vargas não temos comemorações de 1º de Maio tão bem comportadas como as de sexta-feira passada, com as centrais sindicais engajadas no apoio ao governo Lula, mesmo com a alta do desemprego (9% em março, na média de todas as regiões metropolitanas, sendo 10% em São Paulo) e das limitações estruturais da atual política de combate à crise.
Alerta católico
Não por acaso, as principais críticas à política econômica do governo Lula não estão partindo do movimento sindical, nem do grande empresariado. Vêm da Igreja Católica, cujos templos de paredes largas miram a eternidade. Mais precisamente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), entidade que historicamente desempenha relevante papel na vida do país. Não é trivial o progressivo distanciamento do clero católico do governo Lula, cuja política econômica estaria na contramão de sua própria política social e do “outro mundo possível”, alternativo ao “produtivismo consumista”, que no ideário católico seria mais ecológico, solidário e humanizado.
“O pacote de medidas do governo para dar liquidez à economia é incapaz de atingir a raiz da crise, que é a especulação financeira”, dispara o documento de conjuntura que subsidiou a discussão dos bispos. “O Presidente continua dando força ao agronegócio e à mineração, sem atentar aos danos que causam ao meio ambiente. Tudo se passa como se o aumento da produção para exportação fosse uma solução e não um paliativo que adia a crise econômica mas antecipa a crise ecológica. Por acreditar que se trata apenas de uma crise financeira que o capitalismo encontrará uma solução tecnológica para os problemas de energia e meio ambiente, Lula aposta tudo na recuperação do sistema financeiro, reforça o produtivismo consumista e continua a incentivar a produção de commodities para exportação, como se o Brasil, por ter abundância de recursos naturais, tivesse a obrigação moral de vendê-los a baixo preço para outros países”, conclui. Essa seria apenas mais uma manifestação de descontentamento se a Igreja, por meio de suas pastorais, não estivesse levando suas críticas aos movimentos sociais urbanos e rurais.
Atrás do rabo
Outra manifestação relevante contra a política do governo partiu do governador paulista José Serra (PSDB). Cauteloso nas relações com o governo federal, como quem se finge de morto para evitar confrontos com o presidente Lula, o tucano saiu do mutismo e fez duras críticas à política anticíclica do governo durante recente seminário na Fundação Getúlio Vargas (FGV), em São Paulo. Trocando em miúdos, reconheceu que a crise atinge mais duramente a economia de São Paulo do que a de outros estados do país. E acusou o governo Lula de morder o próprio rabo ao utilizar a política fiscal de maneira anticíclica e manter uma política monetária “pró-cíclica”. A aparente esquizofrenia teria por objetivo valorizar o câmbio, nada teve a ver com combate à inflação.
Ao conceder isenções e reduções de impostos que afetam estados e municípios, uma espécie de cortesia com o chapéu alheio, segundo Serra, o governo Lula estaria anulando o papel desses entes federados no combate à crise. Estados e municípios, historicamente, são responsáveis por cerca de 80% dos investimentos públicos do país, enquanto a União (com 1% do PIB) responde apenas por 20% de investimentos restantes, em geral de implementação mais lenta. Para baixar ainda mais os juros (taxa Selic), o governo Lula está numa sinuca de bico, por causa dos 6% de rendimento da caderneta de poupança. A rentabilidade dos fundos de investimentos não suportaria nova queda dos juros sem redução das margens de lucro dos investidores, que ameaçam migrar para as cadernetas de poupança. O governo precisa fazer uma escolha: ou reduz a taxa de lucro dos investidores e instituições financeiras, ou muda a remuneração da poupança. Não é preciso ser adivinho para saber o que vai acontecer.
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