domingo, 11 de outubro de 2009

A Belíndia sem Índia

Suely Caldas
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Os índices sociais e de distribuição de renda têm melhorado nos últimos 20 anos, mas o Brasil ainda está muito longe de deixar de ser uma Belíndia, ficar com sua porção Bélgica e eliminar a porção Índia. Os indicadores do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Humano (Pnud), divulgados na segunda-feira, mostram que desde o Plano Real o País tem trabalhado para reduzir as desigualdades sociais, mas ainda é lento o deslocamento da renda dos mais ricos para os mais pobres.

No epicentro dessa melhoria está a maneira de distribuir a renda por meio de programas sociais. Ao transferir dinheiro público diretamente para as famílias mais pobres, o Bolsa-Família (nascido Bolsa-Escola no governo FHC) eliminou a intermediação de governadores, prefeitos e deputados em programas politicamente manipulados do tipo Vale-Leite (do governo Sarney), em que o político distribuía o benefício para quem nele votasse, e não para quem dele precisasse. Com seu cartão magnético a mulher pobre recebe o dinheiro no banco e ponto final, não há político enganando.

Mas, para suprimir a porção Índia e continuar a avançar na porção Bélgica, o Brasil tem de investir muito em educação, saúde e tratar de manter a inflação bem baixinha. A ação da hiperinflação sobre a renda dos mais pobres foi destruidora no passado, sobretudo no governo Sarney, quando ela chegou a 80% ao mês. Espécie de imposto perverso pago pela população pobre, a inflação destrói tudo o que encontra, desorganiza a economia, impede planos de investimento, arruína a moeda, promove o caos.

O poder da queda da inflação sobre a renda fica evidenciado nos números do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Pnud. O período em que o Brasil mais acelerou seu IDH se deu entre 1995 e 2000, em que foi mais forte o impacto do Plano Real sobre a queda da inflação e seus efeitos econômicos e sociais. Nesses cinco anos o IDH avançou de 0,734 para 0,790 e começou a caminhada para classificar o Brasil entre os países de desenvolvimento humano elevado, consolidada em 2005. Nesse período todos os indicadores sociais avançaram: a expectativa de vida do brasileiro saltou de 68,2 para 70,3 anos; a taxa de matrícula escolar evoluiu de 74,4% para 90,2%; a taxa de alfabetização dos adultos, de 84,7% para 86,9%; e o PIB per capita cresceu de US$ 7.798 para US$ 8.085.

Inflação quietinha, combinada com políticas públicas eficientes nas áreas de educação e saúde, faz a diferença na eliminação da pobreza.

Na educação o progresso maior se deu no ensino fundamental e no governo FHC, quando a taxa de matrícula acelerou e, segundo o IBGE, 96% das crianças entre 7 e 14 anos frequentavam a escola em 2002 (hoje essa taxa subiu para 98%). Nessa faixa etária o investimento agora deve focar a qualidade do ensino, qualificar e remunerar professores, reduzir o analfabetismo funcional e criar políticas para o pré-escolar - crianças entre 4 e 7 anos. Um bom preparo nessa fase diminui muito o analfabetismo funcional adiante. No ensino médio, o governo Lula tem investido com sucesso na criação de escolas técnicas voltadas para qualificar a mão de obra - de operários da indústria a operadores de serviços (comércio, informática e bancos). E nas universidades a ação do Estado tem se voltado para obrigá-las a melhorar a qualidade do ensino. Em educação a evolução tem sido lenta, mas contínua e sem retrocessos.

O drama maior é na saúde. É onde as políticas públicas não funcionam - os hospitais vivem desaparelhados; o déficit de leitos é enorme; é cruel e por vezes inútil o prazo de espera por uma cirurgia ou uma simples consulta; o sistema de emergência nos hospitais é inoperante e o doente morre sem atendimento. Essa situação é amplificada e piora muito em regiões mais pobres, justamente as que mais precisam de saúde pública e gratuita.

Não há políticas comuns nem conexão entre o governo federal, Estados e prefeituras. O Sistema Único de Saúde (SUS) foi bem concebido, mas pessimamente implementado, não funciona, o dinheiro é mal aplicado, quando não é desviado. E há ainda um criminoso déficit em saneamento básico, que faz com que só metade da população tenha água e esgoto tratados, com efeito destruidor na saúde humana. Enquanto o governo federal aumenta os gastos com novas contratações e aumento de salários, o Senado tem centenas de funcionários fantasmas e cresce o repasse de verbas para ONGs suspeitas, os gastos com saúde estão limitados a 7,2% do PIB e não há um sistema eficaz de fiscalização que elimine a corrupção e impeça a ação de quadrilhas, como as dos vampiros e sanguessugas.

É isso, leitor, falta muito para tirar a Índia de nossas vidas.

Os Brics - Os números do IDH mostram que não basta crescimento econômico para fazer avançar o progresso social. É verdade que o crescimento gera empregos, expande e melhora a renda assalariada. Porém, países onde o analfabetismo e outros indicadores de pobreza ainda são marcas fortes precisam de políticas sociais, sobretudo na área da educação, para levar progresso à população marginalizada.

China e Índia têm em comum populações gigantes, com parcelas expressivas vivendo em péssimas condições (sem serviços públicos, sistema de saúde precário e enorme déficit previdenciário) e um crescimento econômico elevado e contínuo há mais de uma década. Mas, como é lenta a ação da expansão econômica na superação da pobreza, os indicadores sociais são muito baixos, o que leva a China a ocupar a 92ª posição e a Índia, o 132º lugar no ranking de países do Pnud. Enquanto Brasil e Rússia são classificados como nações de desenvolvimento elevado, China e Índia estão na lista de desenvolvimento médio.

A China vive uma situação de contraste inusitada no mundo. No mercado financeiro é vista como potência econômica com poder de desafiar os EUA. Dentro do país, potente ainda é a pobreza.

*Suely Caldas é jornalista e professora de Comunicação da PUC-Rio

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