Na segunda-feira, o secretário de Defesa do Reino Unido, Philip Hammond, foi taxativo ao falar aos parlamentares na Câmara dos Comuns: a Argentina não representa uma ameaça séria do ponto de vista militar às ilhas Malvinas, ou Falklands. Como neste jogo de xadrez o Reino Unido joga com as pedras pretas, fica claro que a disputa pelas ilhas no Atlântico Sul podem ter muitos desdobramentos, e o bélico não é um deles.
A certeza de que não haverá guerra tem tornado a confrontação nas ilhas Malvinas uma alternativa tentadora tanto para o governo de David Cameron como para o de Cristina Fernández de Kirchner. Além do embate diplomático, factoides não faltaram de parte a parte: do envio do príncipe Harry para um treinamento militar à troca de um navio de guerra estacionado na região, do lado inglês, à transformação do ator Sean Penn em um protagonista na luta contra o colonialismo, do lado argentino, com direito a discorrer sobre o tema em uma declaração à imprensa ao lado do chanceler Hector Timerman.
Reino Unido e Argentina contam com dois governantes afeitos à retórica radical em meio a um contexto de dificuldades crescentes, em que a carta do nacionalismo é uma excelente forma de atenuar a resistência da opinião pública ao aprofundamento do modelo de Estado que cada um deles propõe. É uma cartada raramente usada na história do Brasil, um país sem disputas territoriais há mais de cem anos. O uso mais recente foi o do "Ame-o ou deixe-o", o slogan do qual o governo Médici lançou mão para insinuar que os exilados e banidos tinham menor sentimento patriótico.
Eleito com dificuldade em maio de 2010, o que obrigou a formar um governo de coalizão com o terceiro colocado, Cameron enfrentou um verdadeiro motim popular em Londres em agosto do ano passado. Tem respondido dobrando sua aposta conservadora: classificou a revolta social como "criminalidade pura e simples" e busca acelerar a implementação de sua agenda. No início do ano, comparou o sistema de saúde pública do país, talvez o mais abrangente e eficaz do mundo, como uma ave de rapina no pescoço dos empreendedores.
Cameron está pagando o preço de suas escolhas nas ruas. De acordo com a última pesquisa divulgada pelo "The Guardian", a aceitação de seu partido recuou de 40% para 36%, enquanto a dos trabalhistas subiu de 35% para 37%. É neste instante que recebe a ajuda de Cristina Kirchner. A ofensiva dos simbolismos argentinos para marcar os trinta anos da derrota militar latino-americana abriu uma oportunidade para Cameron incorporar um pouco da verve de Margaret Thatcher. Não com o brilho da atriz Meryl Streep, mas com a efeitos políticos análogos.
"Primeiros-ministros que são fracos em casa sonham em serem fortes fora. O fantasma de Thatcher paira sobre os conflitos. Nas Falklands, Maggie mostrou que ganhar glória militar rápida era infinitamente mais fácil do que resolver problemas domésticos", observou na semana passada Tony Parsons, colunista do tabloide inglês "Daily Mirror".
Reeleita em outubro com 54% dos votos, Cristina tem oferecido a seus eleitores um cardápio que passa por retirada de subsídios governamentais ao consumo, inflação em alta e desaceleração do crescimento econômico. A presidente necessita promover o ajuste para garantir que o país tenha caixa suficiente para impedir uma crise cambial, doa a quem doer. Implanta uma ortodoxia que passa por uma economia meticulosamente manietada por controles oficiais.
Não há pesquisas que mostram como anda a aceitação popular da presidente argentina, mas a reação acalorada dos ingleses à inócua decisão de dezembro do Mercosul de impedir que navios com bandeira da colônia atracassem em seus portos possibilitou a Cristina pela primeira vez em muito tempo falar em nome da nação e não da principal facção política do país.
No dia 8, ao denunciar formalmente na ONU o Reino Unido por promover uma escalada militar no Atlântico Sul, recebeu o apoio, entre outros, do líder do partido do principal candidato de oposição em 2015, o prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri.
É duvidoso que a questão malvinense tenha para Cristina o poder galvanizador que teria dado uma sobrevida à ditadura em 1982, caso a Argentina tivesse ganho a guerra. Àquela época, a oposição ao general Galtieri embarcou na aventura. Hoje, os intelectuais afastados da Casa Rosada questionam não apenas a oportunidade, mas o mérito da polêmica.
"Não temos ainda uma crítica pública do apoio social à guerra, que mobilizou a quase todos os setores da sociedade argentina. Uma análise minimamente objetiva demonstra a brecha que existe entre a enormidade dos atos e a importância real da questão", assinalaram 17 intelectuais oposicionistas, como Beatriz Sarlo, Vicente Palermo, Juan José Sebrelli e Marcos Novaro, no documento "Malvinas: uma visão alternativa".
No texto, os intelectuais afirmam que o princípio de autodeterminação deve valer para os habitantes da ilha, britânicos em sua essência. "É necessário por fim hoje à contraditória exigência do governo argentino de abrir uma negociação bilateral que inclua o tema da soberania, ao mesmo tempo que se anuncia que a soberania argentina é inegociável", afirma o texto, que define o slogan "Las Malvinas son argentinas" como uma "afirmação obsessiva".
"Como membros de uma sociedade plural e diversa que tem na imigração sua fonte principal de integração populacional não consideramos ter direitos preferenciais que nos permitam sobrepor aos que vivem e trabalham nas Malvinas há várias gerações, muito antes que chegassem ao país alguns de nossos ancestrais".
A reclamação kirchnerista pelas Malvinas faz uso de um nacionalismo conveniente à medida em que não gera consequências diretas. Em relação a outras causas em que o nacionalismo poderia afetar a economia nacional, o governo argentino não hesita em favorecer o investimento externo, como ocorre atualmente na mineração. Há questionamentos em todas as províncias mineradoras à extração de minérios a céu aberto, feitas por empresas invariavelmente estrangeiras. A tendência dos governadores, todos alinhados à Casa Rosada, é de garantir o espaço para os empreendimentos seguirem adiante.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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