sexta-feira, 2 de março de 2012

Só quando o Sargento Garcia prender o Zorro :: Fernando Gabeira

Uma das grandes ilusões humanas é a de que as coisas não mudam. E que a História se repete como a natureza, com a regularidade natural das estações do ano.

Durante o desfile da Gaviões da Fiel, o ex-presidente do Corinthians Andrés Sánchez afirmou que o presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Ricardo Teixeira, só deixará o cargo quando o Sargento Garcia prender o Zorro. Embora as relações entre política e futebol não sejam lineares, ambos estão sujeitos a um incessante movimento transformador. Quem tem mais dificuldades para reconhecer o câmbio é justamente quem sonha em se perpetuar no poder.

Em 1910, como lembra o historiador Joel Rufino dos Santos, o futebol era jogado no Bangu Athletic Club numa grama que servia ao cricket. Calções e meias eram importados e os jogadores celebravam suas vitórias cantando "when more we drink together, more friends we"ll be".

O Sargento Garcia prendeu o Zorro da exclusividade aristocrática e o esporte se tornou popular. Tão popular que no Brasil, em sintonia com os políticos, o País quer projetar a imagem de hegemonia no futebol. A ditadura militar também se interessava pelo tema. Médici deixava-se fotografar fazendo embaixadas e chegou a tentar escalar jogadores na seleção de 1970.

Os tempos são outros: governo popular, ascensão econômica, reconhecimento internacional - tudo converge para transformar a Copa do Mundo numa espécie de vitrine da nova fase brasileira. A Copa de 2014 foi pensada para projetar o Brasil duplamente: crescimento econômico e supremacia no futebol.

No universo das crônicas de Nelson Rodrigues o argumento ganha cores mais vivas: a seleção nacional de futebol é a Pátria em calções e chuteiras a dar rútilas botinadas, para superar um obstáculo que sempre a paralisou, o complexo de vira-latas. A realidade do futebol brasileiro, porém, é de decadência. São dados que transcendem o complexo de vira-latas, transfigurado no discurso oficial como "torcida do contra".

A Fifa rebaixou o Brasil para sétimo lugar no ranking mundial. Mantida esta realidade, a seleção não iria às finais e os gastos de R$ 1 bilhão para reformar o Maracanã teriam sido parcialmente supérfluos, pois os jogadores brasileiros não pisariam no seu gramado em 2014.

O retrospecto fortalece essas previsões. A Copa Sul-Americana mostrou o futebol chileno, com o Universidad de Chile, não só como campeão, mas jogando um futebol muito superior ao dos brasileiros que enfrentou. Era preciso, todavia, ainda uma confirmação do declínio relativo. E ela surgiu no jogo Barcelona x Santos, no Japão. Duas escolas, dois ritmos, uma certeza que o próprio Neymar expressou ao comentar a derrota: "Aprendemos uma lição".

Ao mesmo tempo que amargamos o declínio no gramado, estouram novos escândalos envolvendo os dirigentes do futebol brasileiro. Na Inglaterra, Ricardo Teixeira e João Havelange foram denunciados muitas vezes pela imprensa. Pesam contra eles denúncias de corrupção, processos na Justiça suíça e, recentemente, o presidente da CBF teria faturado para si parte dos lucros da partida Brasil x Portugal, realizada em Brasília. Num movimento para escapar do Sargento Garcia, Teixeira transferiu sua riqueza para Miami, onde vai operar empresa numa mansão recém-comprada. Não é o primeiro nem o último. Quase todos acabam em Miami.

Há alguns fatores ainda por explicar nesse processo. Ligados mais no futebol do que na política, os brasileiros ainda não manifestaram oposição maciça aos dirigentes que enriquecem e, simultaneamente, afundam o esporte.

Documentei a primeira manifestação contra Ricardo Teixeira, no dia em que foram sorteadas as chaves da Copa, no Rio de Janeiro. A partir dali, há apenas uma campanha na internet. Aquele sorteio é um caso para estudar a relação política-futebol. O governo do Estado e a prefeitura investiram R$ 30 milhões na festa. O aluguel de uma cadeira custou R$ 245, o preço de uma cadeira nova.

Um segundo fator de perplexidade é que a política brasileira, tão atenta ao futebol, não registra interesse especial por seu declínio. Há críticas à CBF e também à condução das obras da Copa. Mas um país que tensiona seus recursos para realizar a Copa do Mundo e a vê como uma projeção de poder talvez esteja confundindo o ritmo do futebol com o ritmo da economia.

A tese de alguns defensores do governo é que o crescimento econômico torna a corrupção política secundária. A satisfação material aumenta a tolerância com os desvios, que hoje se descrevem com um termo mais suave: malfeitos. Como se a CBF fosse um partido aliado em apuros, o governo comporta-se com Teixeira como fez com os ministros demissionários: espera que apodreça e caia, como os outros frutos do realismo político.

A Copa do Mundo coincide com as eleições presidenciais. Não há relação direta entre prestígio do governo e da seleção nacional. Em vários momentos o Brasil perdeu no futebol e o candidato do governo se reelegeu.

Em 2014 a Copa será aqui, o governo esforçou-se para trazê-la e se dispõe a gastar bilhões para realizá-la. Sua alternativa, em caso de fracasso nos campos, é afirmar o crescimento econômico e transferir a derrota para a CBF, uma entidade privada. Um último recurso seria contar com o Sobrenatural de Almeida, o personagem criado por Nelson Rodrigues que desafia a lógica e parece ter nascido para o futebol, um esporte cheio de lances imprevisíveis.

A julgar pelo retrospecto, a Copa do Mundo no Brasil tende a confirmar a hegemonia do futebol europeu. No Velho Continente a economia declina, mas seu futebol ainda está no topo do ranking mundial.

Há quem pareça mesmo acreditar que as mudanças no esporte brasileiro só virão quando o Sargento Garcia prender o Zorro. Numa jogada audaciosa como a realização da Copa do Mundo, a multidão dos amantes do futebol pode se indignar com o atraso que os cartolas representam. Nesse caso, a única boa notícia que os espera são os baixos preços relativos dos imóveis em Miami.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

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