sexta-feira, 18 de maio de 2012

A filha do tempo:: Maria Cristina Fernandes

Na foto de Ruy Baron (Valor, 17/05), os presidentes da República, sentados para a cerimônia que instalou a Comissão da Verdade, aparecem perfilados quase de costas. É um naco de cada um que permite identificá-los - a cabeleira repartida de lado de Collor, o aro do óculos de Fernando Henrique, o cabelo ainda ralo de Lula e o menos grisalho deles em Sarney.

Daquela fileira de ternos escuros recostados em suas cadeiras, sobressai-se a presidente Dilma Rousseff. Esmeradamente penteada, a presidente não está recostada como os demais. Se a cerimônia não estivesse no início, se poderia julgar que preparava-se para levantar. De queixo erguido e expressão fechada, olha para a frente. Parece prestes a tomar uma atitude. E tomou.

Em 21 minutos de um discurso interrompido uma única vez pela voz embargada, virou o nunca na história desse país ao avesso.

Avocou a contribuição de cada um dos ex-presidentes ali presentes para que a iniciativa vingasse. De Sarney, que conduziu a transição, de Collor, que abriu os arquivos do Dops, de Fernando Henrique, que sancionou a lei em que o Estado reconheceu, pela primeira vez, a responsabilidade dos mortos sob sua custódia, e de Lula, que encaminhou ao Congresso a lei que criou aquela comissão.

Num auditório que a aplaudiu várias vezes durante o discurso, apenas os comandantes militares se mantiveram inertes, mesmo quando a presidente lhes dirigiu o convite - "independentemente do papel que tiveram e das opiniões que defenderam durante o regime autoritário" - para que se levantasse o véu de ignorância sobre a história.

O esforço de Dilma em caracterizar a comissão como ato de Estado e não como fruto do governo de uma torturada não evitará a contestação da legitimidade de seus trabalhos.

A divisão que já se instalou entre seus integrantes se a apuração deve focar nas violações aos direitos humanos cometidos por agentes do Estado ou se deve se estender à guerrilha já é um reflexo dessa contestação.

O texto da lei, que na interpretação de alguns juristas deixou a questão em aberto, foi negociado no governo Lula pelo então ministro da Defesa, Nelson Jobim, com os militares.

O ministro foi uma das primeiras heranças de Lula a cair no governo Dilma. A expectativa, alimentada por setores das Forças Armadas a partir do texto acordado, de que militares pudessem vir a compor a comissão, foi frustrada por Dilma.

Todos os sete integrantes nomeados para a comissão combateram a ditadura. A divisão entre aqueles que querem uma comissão restrita à apuração da violência estatal e os que aceitam ampliá-la para todas as violações aos direitos humanos, não importa de que lado tenham partido, não obedece ao viés partidário. Os dois ex-ministros do governo Fernando Henrique Cardoso que integram a comissão já emitiram opiniões divergentes sobre o tema.

Os guerrilheiros já foram punidos com tortura, morte e desaparecimento enquanto as vítimas dos quartéis, em número muito mais reduzido, estão enterradas com honras militares. A onda pela apuração dos atos da guerrilha crescerá à medida que aumentar a pressão pela revisão da Lei da Anistia.

É inevitável que essa pressão cresça, ainda que a comissão da verdade não possa ser considerada derrotada se a lei não sair do lugar. São incipientes mas têm diretrizes e organização nacional os movimentos de jovens que surgem em busca da reparação. Não são parentes de mortos e desaparecidos, nem militantes de partidos de esquerda. Militantes do Levante Popular da Juventude, conta Cristiane Agostine, do Valor, já picharam a portaria do prédio do militar que Dilma já reconheceu como seu torturador, mas também protestam contra a violência policial que mata jovens negros da periferia, lutam por cota nas universidades e por moradia popular.

Por que se multiplicariam agora se passaram os últimos 30 anos sem poder de mobilização? Um militante pela causa da Comissão da Verdade tem uma hipótese. Diz que enquanto os partidos de esquerda alimentaram a utopia da reparação, essa insatisfação foi ali escoada. Depois que os partidos de esquerda, o PT à frente, submeteram suas utopias à agenda eleitoral, os movimentos acabaram ganhando vida própria.

A Comissão da Verdade não tem a revisão da Lei da Anistia em seu escopo. Mas em muitos dos países em que foi instalada o conhecimento dos fatos como os fatos foram acabou propiciando a mobilização social pelo esclarecimento do que o deputado estadual Adriano Diogo (PT-SP), integrante da Comissão da Verdade paulista, chama de três quem: quem foi atingido, quem os atingiu e quem será responsabilizado.

Luciano Siqueira (PCdoB-PE), outro deputado estadual envolvido com a comissão da verdade de seu Estado, é um entusiasta da iniciativa que da revisão da Lei da Anistia. Situa-a no panteão dos pactos pelos quais se move o país: independência declarada pelo imperador, abolição assinada por uma princesa, República proclamada por um general monarquista, e Nova República inaugurada pelo líder do partido da ditadura.

A Lei da Anistia sempre foi sustentada sob o argumento de que o golpe militar contou com apoio popular e de parte da classe política e produziu um número menor de vítimas do que suas congêneres latino-americanas.

Se na vizinhança contam-se os mortos aos milhares, talvez não seja a quantidade de zeros que determina a brandura de um assassinato. Mais difícil de quantificar é o alcance da impunidade, numa história marcada pelos consensos apaziguadores - desde as torturas que sobrevivem nos porões das delegacias, até os grandes malfeitos de uma República em que todos parecem estar do mesmo lado e a verdade que pune nunca está em lugar algum.

Dilma encerrou o discurso citando Galileu Galilei: "A verdade é filha do tempo, não da autoridade". Além de instalar a comissão, a presidente, na mesma cerimônia, sancionou a Lei de Acesso à Informação, a partir da qual, além do controle da administração pública, os dados relativos à violação de direitos humanos nunca mais poderão ser considerados secretos. São ambas, disse em discurso, fruto de um longo processo de construção da democracia. Que contribuam, a partir de agora, para abreviar a justiça.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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