Reza a lenda que macroeconomistas só gostam de PIB e de inflação. E, vá lá, de juros. Esses temas áridos, imbuídos da fria racionalidade dos dados da economia brasileira, são como uma sombra, escondem uma realidade vibrante, luminosa, dizem por aí. A realidade do processo de inclusão social, dos milhões de mulheres e de homens que entraram na classe média e ampliaram o mercado consumidor brasileiro. Essa é uma saga que já dura há muito tempo, começou com a estabilização da economia e com as políticas sociais de Fernando Henrique Cardoso e continuou sob os esforços dos governos do PT. É, de fato, fascinante refletir sobre os contrastes entre este novo país e o de duas décadas atrás.
Mas o fascínio pela fotografia atual não deveria querer ocultar o filme que se desenrola ao fundo. Fotografias podem ser belas, como as tiradas com uma Rolleiflex. Porém, são apenas um pedaço de tempo, congelado. Dependendo da qualidade do papel, amarelam ou se esfacelam.
A renda real das classes mais baixas cresceu. E muito. Segundo os dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a Pnad de 2011 compilada pelo IBGE, entre 2003 e 2011 os rendimentos das famílias mais pobres – as que ganham somente até um salário mínimo até aquelas que recebem 5 salários mínimos - aumentaram cerca de 50%. De acordo com a Pnad, esses domicílios representam cerca de 70% do total das residências brasileiras. Ao longo do mesmo período, o PIB per capita do Brasil aumentou uns 30% em termos reais. E, em 2012, o PIB do País se expandiu somente 0,9%, um resultado desolador.
A presidente Dilma advertiu que não é pelo PIB que se deve medir aquilo que uma nação faz por seus habitantes. De fato, o PIB é uma fotografia, digamos, tremida, da realidade. Por ser a soma de tudo o que se produz internamente, não capta os detalhes, as nuances, do que está acontecendo nos diversos segmentos da economia. Mas, se o PIB é uma foto mal tirada, a Pnad, dependendo de como os seus dados são tratados, pode se tomar uma foto parcial, daquelas em que o rosto do sujeito aparece apenas pela metade ou em que os pés são cortados por um fotógrafo que não consegue enquadrar o seu objeto.
A renda das famílias mais pobres aumentou de forma expressiva durante os governos petistas. Entretanto, parte desse aumento proveio de uma recomposição dos rendimentos, que haviam caído substancialmente entre 1998 e 2003, quando a inflação acumulada superou a registrada nos oito anos seguintes. Isso explica uma parte considerável da queda da renda das famílias brasileiras, sobretudo das mais pobres, no final do governo FHC.
Enfoquemos, pois, a inflação, o "Valor em si" da presidente Dilma. A inflação no Brasil está alta, em grande parte porque os salários aumentam acima da produtividade. Só não está mais alarmante porque o governo brasileiro tem controlado a temperatura com antitérmicos -as desonerações - cujo efeito é temporário. É preciso reinventá-las continuamente para criar a ilusão de que a inflação está caindo.
Quando as contas públicas não mais aguentarem a corrosão seqüencial das receitas, quando as desonerações atingirem o seu limite, a inflação fatalmente subirá. Esse é o filme de terror que se tem desenrolado, insidiosamente, ao fundo. A resistência do governo em assisti-lo, a preferência pelas imagens da Rolleiflex da presidente, aquelas que mostram famílias sorridentes com seus salários mais altos, se tomarão coisa do passado caso se persista em bagunçar a economia brasileira com políticas desconjuntadas. Afinal, são as classes mais pobres as que mais sofrem com esse imposto regressivo e ardiloso, o aumento geral de preços. Para perpetuar o processo de inclusão social e garantir a sua sustentabilidade, combater a inflação de modo eficaz é essencial.
A inflação é um "Valor em si". "Si" é uma nota musical. Portanto, presidente, "você com a sua música esqueceu o principal": que no peito dos desajustados, no fundo do peito bate calada, no peito dos desavisados sempre bate a inflação. Com ou sem desoneração.
Economista, professora da PUC-RJ
Fonte: O Estado de S. Paulo
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