Em viagem de pesquisa visitei áreas rurais na divisa do Maranhão com o Pará. Muitos pequenos povoados com centenas de motos cruzando as estradas da região. Inúmeros sinais de continuidade do atraso histórico, mas iguais evidências, ainda embrionárias, de algum dinamismo social.
Em sua casa de barro, conversei com um jovem agricultor. Recém-casado e com um filho de 6 meses, ele cultiva uma pequena roça com mandioca, praticando a "agricultura no toco", que significa o desmate de uma área de mata original e o plantio após a queimada dos remanescentes florestais. Só vende a farinha se precisar de dinheiro, pois recebe uma bolsa do programa Mais Educação. E o que faz? "Sou professor de agroecologia", diz com certo orgulho. Ele explica que se trata de ensinar a preparação de "canteiros sustentáveis, plantar horta sem venenos", adiantando, contudo, que não foi treinado e, por isso, não sabe "ainda o que é agroecologia". Trabalha um dia por semana na escola da comunidade e recebe R$ 600 mensais.
Em outra comunidade rural, o líder que organizou o levantamento dos interessados locais no programa Minha Casa, Minha Vida afirma que serão oferecidos empréstimos de R$ 35 mil, mas cada família pagará apenas R$ 1 mil, divididos em quatro anos, indicando um subsídio de 97% nas futuras moradias. A dele é uma modesta casa de chão batido e seus olhos brilham ante a perspectiva de mudança. Fazia pouco tempo que esse agricultor assistira a uma conferência em Belém, destinada a representantes comunitários do programa, durante a qual foi escolhido para participar da conferência nacional, em Brasília. Não conhece nada além do Pará e a chance da viagem também alegra o líder da comunidade.
Já em Salvador, uma candidata a empregada doméstica foi entrevistada na casa da senhora contratante. Acertados o salário e os horários de trabalho, ela impôs uma inesperada exigência: não queria ter a Carteira de Trabalho assinada. Diante da surpresa, explicou que se for assim perderá o "auxílio-pesca" que recebe há quase dez anos. "Mas você é pescadora?" Ela riu e disse que nunca fez isso, mas em seu município de origem todos recebem o benefício federal, mesmo não sendo pescadores. Mora com o marido na capital, mas mantém o endereço anterior para continuar beneficiária. Pretendem se mudar para a cidade de Conde, pois lá ofereceriam adicionalmente uma cesta básica por mês.
No outro lado do País, diversos resultados de estudos realizados nas reservas extrativistas do Acre demonstram processos sociais similares, notavelmente adaptados ao sistema de bolsas e auxílios oferecidos pelo governo federal desde 2003. Na famosa Reserva Extrativista Chico Mendes, a principal atividade atualmente não é o extrativismo, mas a pecuária de corte, de fato proibida pelas normas do Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Nem por isso, no entanto, muitos deixam de receber a Bolsa Verde. Aliás, por essa razão, em outra reserva, no Alto Juruá, o líder da comunidade afirma: "O que mais se produz aqui é menino, pois é o que rende mais" - em referência ao recebimento de Bolsa Família e outros benefícios, como a bolsa que a mãe poderá pleitear do Programa Brasil Carinhoso.
Finalmente, fruto de pesquisas em diversas regiões, é iluminada a preocupante associação entre a multiplicação das bolsas e a redução da atividade agrícola. Repete-se, em alguma medida, o que foi verificado na década de 1990, quando a disseminação das aposentadorias rurais após a regulamentação da Constituição permitiu a inúmeras famílias rurais pobres trocar parcialmente a incerteza da produção pelo recebimento monetário certo e mensal desse direito. Em consequência, diminuiu a oferta de produtos agrícolas, sobretudo nas regiões rurais mais empobrecidas.
São ilustrações do bolsismo. Quais os seus reais impactos na sociedade brasileira, além da simplória propaganda governamental? É um debate sinuoso e desafiador, pois facilmente polariza, de um lado, a defesa intransigente e usualmente irrefletida, quase sempre partidarizada, e, de outro lado, as opostas posições, até reacionárias, que não aceitam sequer a compaixão social pelos mais pobres. Mas é preciso aprofundar a discussão, escapando desse diálogo de surdos e examinando com mais ciência e distanciamento analítico o gigantesco sistema de auxílios, bolsas e benefícios criado e as suas implicações mais variadas.
Esgotada a meta inicial do bolsismo, que era o aumento da renda dos menos favorecidos, qual será o passo seguinte? No caso das famílias rurais pobres, por exemplo, o conservadorismo do imaginário social poderá acentuar o que julga ser a inata indolência desses grupos sociais, visão já consagrada por alguns escritores no passado. Raramente se observa, contudo, que as escolhas das famílias rurais refletem um sábio cálculo econômico que pondera a exaustão da atividade e os recursos disponíveis, uma equação que um economista agrícola russo, Alexander Chayanov, desvendou quase cem anos atrás em diversos trabalhos.
Não são aceitáveis a superficialidade e as frases de falastrões, ao chegarmos aos dez anos do Programa Bolsa Família. Também é inconcebível tudo ser feito apenas para manter a estreita correlação entre a distribuição das bolsas e o apoio político ao partido no poder. Precisamos ultrapassar esse rebaixamento de cunho eleitoreiro e analisar o sistema de proteção social brasileiro com mais transparência, refinamento e visão de nação. Trata-se de uma vasta estrutura de assistência a que quase ninguém mais se opõe, mas precisa ser aperfeiçoada e transformada numa alavanca pública para promover a prosperidade geral. Manter o sistema de bolsas, que apenas se amplia, sem nenhuma estratégia, especialmente para garantir votos, desqualifica nossos esforços para construir a emancipação cidadã e estimular o desenvolvimento social do País.
Sociólogo, é professor aposentado da UFRGS
Fonte: O Estado de S. Paulo
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