A política externa é uma política pública. Tem como objetivo básico traduzir necessidades internas em possibilidades externas. Isso, no mundo contemporâneo, tem especial relevância porque o processo de globalização, nas suas múltiplas vertentes, contribui para diluir o que separa o "interno" de um país do que a ele é "externo". A importância crescente dos fluxos e das redes tornou as fronteiras porosas e, por isso, o mundo se "internaliza" na vida dos países, inclusive na forma de expectativas, positivas ou negativas, que guiam as condutas dos atores governamentais e não governamentais atuantes no sistema internacional. Tal "internalização" adensa o relacionamento entre política interna e externa, mas não é uniforme. Obedece à lógica das especificidades próprias e das características da inserção internacional dos países.
No Brasil, pela natureza do seu presidencialismo e pelo que estipula a Constituição, o rumo da política externa é responsabilidade do presidente da República, que a exerce de acordo com as características de sua liderança e personalidade. Foi o que fizeram Fernando Henrique Cardoso e Lula. Ambos, com grande interesse pela política externa, deram sentido de direção à diplomacia brasileira, valendo-se da qualificada competência do Itamaraty.
Independentemente das muitas críticas que tenho, expostas nesta página no correr dos anos, ao sentido de direção que Lula imprimiu à inserção internacional do Brasil, cabe registrar que, na atual administração petista, a política externa perdeu energia e centralidade. A presidente Dilma Rousseff não só não revelou maior interesse pela ação diplomática, como não deu o devido respaldo ao Itamaraty, fragmentando o processo decisório da política externa, tornando-o difuso e desconexo. Uma das consequências foi a erosão do prévio patamar da presença do Brasil no mundo, obtido, de distintos modos, nas gestões de Fernando Henrique e de Lula, e também a reiteração do inadequado. São insatisfatórias, no âmbito governamental, a identificação das necessidades internas e a avaliação das possibilidades externas num cenário internacional em movimento, de que são exemplos as mutações geopolíticas e as em andamento na ordem energética mundial, a velocidade com que se amplia o horizonte do conhecimento e o seu impacto na competitividade, o papel crescente das cadeias globais de valor no comércio internacional.
Daí a imprescindibilidade para a condução da política externa de sensibilidade estratégica como componente de governança que saiba mesclar com criatividade e sentido de direção a relação entre o "interno" e o "externo". É isso que torna relevante a discussão, na campanha presidencial deste ano, da política externa.
Para isso aponta recente documento do PSDB, com o qual me identifico, ao almejar "um país que participe ativamente da comunidade internacional, negociando com todos os continentes", tendo como ponto de partida interno "um país justo, inovador, sustentável, produtivo, integrado e moderno", que valorize, no campo dos valores, "a sua rica diversidade cultural".
O documento do PSDB, articulado e inspirado pelo senador Aécio Neves, assinala a existência de um desejo de mudança comum a muitos brasileiros e indica que uma das suas razões, que impacta a política externa, é a perda de confiança no governo. Essa degradação de confiança na administração petista tem muitos vetores arrolados no documento. Entre eles, o aumento da incerteza proveniente da erosão de um ambiente econômico adequado para o desenvolvimento do País; o desacerto de serviços públicos essenciais como saúde, educação, transportes, que tem uma das suas raízes na falta de profissionalismo na gestão pública, comprometida pelo contínuo aparelhamento político-partidário; a precariedade crescente da infraestrutura, que põe em questão a logística do País e a desatenção a válidos preceitos de sustentabilidade que vem comprometendo, inter alia, a qualidade da matriz energética e o papel do etanol; a corrupção - os malfeitos, na terminologia da presidente -, que mina as instituições democráticas; e o estilo petista de governar baseado, de um lado, na cooptação e, de outro, no constrangimento político, lastreado na prática intolerante da desqualificação dos opositores, que deteriora o ambiente político e aumenta a desconfiança dos brasileiros na atividade pública.
A voz das recentes manifestações públicas nas ruas, ainda que difusa na sua mensagem e por vezes destrutiva quando acompanhada de violência, é uma expressão de indócil desconforto com a situação presente. Não é exteriorização de ingratidão em relação aos mecanismos de inclusão social, como alegado por próceres petistas, mas, sim, a tradução de que, por si só, o que está sendo feito não dá conta dos problemas atuais do País, o que alimenta o desejo de mudança.
Toda política externa adquire o adicional do soft power na sua ação diplomática na medida em que é vista e percebida no plano internacional como a expressão de um país que, além do quantitativo dos seus recursos e de sua escala, tem dimensões qualitativas, nos campos econômico, político e no dos valores. É isso que amplia a credibilidade e gera expectativas positivas que, por obra das redes e dos fluxos, operam no mundo contemporâneo.
A credibilidade externa é uma faceta da confiança interna. A perda da confiança interna é um dos fatores que diminuem a capacidade de uma inserção internacional mais construtiva do País. É por isso que a primeira necessidade interna para a recuperação de uma presença internacional mais ativa do Brasil é a recuperação da confiança interna, e esta dificilmente se obterá com a reeleição da presidente, que tenderia, se bem-sucedida, a insistir, sem sensibilidade estratégica, em fazer mais do mesmo.
Professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo
Fonte: O Estado de S. Paulo
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