sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Michel Zaidan Filho - O curriculum mortis - a lição de vida

Em plena sessão de abertura do 7o Encontro dos grupos de Pesquisa sobre Marx e o Marxismo, ontem, na Universidade Federal de Pernambuco, recebemos com muita tristeza a notícia da morte do filósofo, escritor, crítico e historiador Lenadro Konder. Filho de pai marxista e militante do PCB, Konder desenvolveu - ele próprio - a sua aventura biográfica como pensador e militante comunista. 

Tinha um talento nato para a divulgação de temas e assuntos complexos e difícieis. Foi um pioneiro na introdução e abordagem de questões teóricas e filosóficas, como a alienação, a estética marxista, a ontologia social, a obra de Franz Kafka, Bertold Brecht, o pensamento de Walter Benjamin, entre outros temas.

Foi um autor que contribuiu muito para a abertura critica da obra de Marx e o Marxismo entre nós. Obras como: 0 Marxismo na batalha das Idéias, A filosofia da Práxis no limiar do século XXI, seus artigos e ensaios teóricos publicados nas revistas TEMAS de Ciências Humanas, PRESENÇA, Civilização Brasileira influíram poderosamente sobre o necessário arejamento da mentalidade socialista da minha geração. Mas queria dedicar mais atenção a duas obras que foram objeto de muito debate e controvérsia nas esquerdas.

O luminoso ensaio "0 curriculum mortis": a necessidade de reabilitação da autocrítica nas esquerdas, publicado na revista PRESENÇA e o livro A recepção das idéias de Marx no Brasil.


O ensaio é um dos mais belos e profundos exemplos de humildade revolucionária, que se conhece. Lenadro Konder nunca foi um ativista radical; sempre se definiu como um reformista democrático, embora no final da vida tenha abandonado o PT pelo PSOL. Mas era antes de tudo um cavalheiro, um ser humano gentil e cortes, mesmo com os que dissentiam de suas idéias. Neste artigo, Konder fala da necessidade de se escrever um currículum mortis, em lugar do conhecido curriculum vitae. Dizia ele, o CC.VV. é a ideologia do triunfalismo dos vencedores olímpicos, os que nunca duvidam, nunca hesitam ou erram. Estão sempre certos e com a verdade. 0 CC.MM. seria o contrário: o reconhecimento de nossas derrotas, nossos erros, nossas dúvidas e hesitações. Então, a esquerda (e o ser humano em geral) precisava fazer, de vez em quando, um curriculum mortis ou reabilitar a necessidade de uma autocrítica sincera, verdadeira.

Não haveria, assim, nada pior do que a consciência dogmática (e acrítica) de quem acha que nunca errou e sempre fez a escolha certa. Este pensamento dogmático seria muito perigoso para o pensamento de esquerda, que deveria assim recuperar a saudável atitude da humildade revolucionária de reconhecer falhas, fraquezas e erros. Quem não se lembra, aqui, de Fernando Pessoa, em "Poema em linha reta"?

O outro ponto que gostaria de destacar, nessa homenagem, é o livro que reproduz na íntegra a tese de Doutorado de Konder, A derrota da dialética. Tive o privilégio de acompanhar o desenvolvimento desse trabalho, pois escrevia uma tese semelhante sobre o mesmo tema: a formação do pensamento marxista brasileiro, sobretudo durante a década de 20 (0 PCB e a Internacional Comunista). Troquei muitas cartas com o autor sobre a interpretação do significado e valor daquele marxismo originário. 

Nem sempre concordando comigo, o Konder reconhecia as minhas razões e se dispõe a fazer a apresentação do livro. Para mim, era uma honra, apesar das discordâncias. Mas a sua generosidade intelectual era tão grande que compensava qualquer discordância ou desacordo.

No ano que passou, dediquei-lhe a atenção - num pequeno artigo - sobre "o Lenin que poderia ter acertado", uma polêmica cordial e fraterno sobre as suas interpretações acerca da história do marxismo brasileiro. Este ano, elaborando uma tese de titularidade sobre a formação do primeiro núcleo dirigente do PCB, voltei a ele, discutindo suas teses e interpretações e reafirmando velhos pontos de vista. infelizmente, a doença degenerativa o que afligiu o retirou do nosso convívio intelectual.

Morre o ser humano, mas fica um legado de tolerância, gentileza, finura - que está se tornando cada vez mais raro no mundo.

Cientista Político e professor da Universidade Federal de Pernambuco

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