Quando as pesquisas revelam que dois em cada três brasileiros consideram o governo ruim/péssimo e três em cada quatro afirmam não confiar na presidente da República, o segundo mandato de Dilma Rousseff se torna deslegitimado de fato logo no seu início. Em consequência, o País mergulha num processo que se pode chamar de "bordaberryzação", por analogia na forma - e tão somente na forma - com o que ocorreu no Uruguai na década de 1970. Lá, o presidente conservador Juan María Bordaberry, principalmente por ter-se revelado incapaz de combater a ação guerrilheira dos tupamaros, para permanecer no cargo teve de ceder o comando de fato do país aos militares. Aqui, a presidente petista Dilma Rousseff, incapaz de controlar a crise criada pelo acúmulo de seus erros na condução da economia e da política, se vê constrangida a entregar o comando da economia a quem professa convicções opostas às que sempre defendeu e a condução da política a forças que, embora formalmente aliadas, ela sempre tratou com certo desprezo e, mais recentemente, como inimigas.
Joaquim Levy à frente do Ministério da Fazenda e o vice-presidente Michel Temer no comando plenipotenciário da articulação política, se não significam exatamente a "renúncia branca" de Dilma à Presidência, como definiu o senador Aécio Neves, traduzem, de qualquer forma, a rendição da chefe do governo à evidência de que não é mais capaz - se é que algum dia o foi - de comandar o País com suas próprias forças e ideias. E essa rendição - concretizada sem que do episódio se possa extrair mérito ou grandeza - poderá vir a ser considerada, de uma perspectiva histórica, o marco da falência do projeto de poder que o PT criou para durar para sempre.
Notícias e comentários veiculados em todas as mídias, ainda sob o impacto dos acontecimentos dos últimos dois dias, dão conta de que Lula teria ficado aliviado e satisfeito com o desfecho da crise da coordenação política - uma crise dentro da crise. É realmente admirável a capacidade que o ex-presidente tem de fazer repercutir nos veículos de comunicação - a "mídia golpista" que o PT não se cansa de denunciar - suas tentativas de transformar limão em limonada. Mas aliviado deve ter ficado. Afinal, o novo protagonismo de Michel Temer arrefece o tiroteio que dominava a cena política e permite ao ex-presidente planejar melhor seus próximos passos para tentar evitar a crescente ameaça do naufrágio de suas pretensões de voltar à Presidência. Satisfeito, porém, é improvável que Lula tenha ficado.
Em primeiro lugar, porque o fracasso da criatura é o fracasso do criador. E até os eleitores do PT já processam a ideia - e as pesquisas o revelam - de que Lula tem tudo a ver com a lambança em pauta. Além disso, foi o próprio ex-presidente quem colocou na cabeça de Dilma a ideia que se revelou impraticável de nomear Eliseu Padilha para a articulação política. Era perfeitamente previsível que Renan Calheiros e Eduardo Cunha se oporiam a essa nomeação, como o fizeram, porque a presença de um correligionário de reconhecida competência política no lugar do trapalhão Pepe Vargas certamente comprometeria a posição de força que ambos exibem em sua relação política e institucional com o Palácio do Planalto.
É claro que, do ponto de vista de Calheiros e de Cunha, Michel Temer é uma ameaça até maior do que Padilha. Mas nenhum dos dois pode se opor abertamente ao vice-presidente da República e presidente de seu partido, o PMDB. Por isso mesmo ambos fizeram declarações anódinas de apoio à decisão de Dilma. Lula está em posição semelhante. Se, na articulação política, preferisse Temer a qualquer outro peemedebista, teria dito antes a sua pupila. Mas ele é esperto o suficiente para não encher a bola de quem sabe que tem cacife para lhe criar problemas mais para a frente. Tais espertezas contribuem para tornar imprevisível o futuro do governo petista.
Apenas a título de curiosidade - e feita a imprescindível ressalva de que aqui os militares permanecem nos quartéis -, não custa lembrar que no Uruguai o presidente Bordaberry acabou sendo defenestrado por quem o mantinha no poder.
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