segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Luiz Eduardo Soares: Rede, parangolés e a conjuntura nacional

Resumo
Antropólogo e um dos articuladores da Rede Sustentabilidade critica o ambiente de antagonismo e ódio que se acirrou na política e na sociedade brasileiras com as eleições de 2014. No texto, o autor de "Elite da Tropa" recorre à obra do artista Hélio Oiticica para refletir sobre novos rumos para o debate e a prática política no país.

- Folha de S. Paulo / Ilustríssima

Mergulhado na crise, o país não vê saída. Zumbis no espelho, a presidente e a maior parte das oposições erguem as bandeiras dos adversários e fazem o inverso do que sempre defenderam, alheios à repulsa da sociedade, liquidando a legitimidade. A tal nova matriz econômica apenas confirmou nossa tradição autoritária e clientelista e meteu o país no atoleiro. Saltamos do patrimonialismo à Justiça criminal sem baldeação.

Os rumos de nosso desenvolvimento, agora congelado, nos condenam à insustentabilidade. Autoridades disputam rações de poder olimpicamente indiferentes à catástrofe climática que ajudam a contratar. Todas as conquistas sociais dos últimos 20 anos estão em risco. Até mesmo a maior de todas: a expansão da experiência do protagonismo cidadão e a elevação das expectativas de mobilidade e integração. A devastação de Mariana pela erupção torrencial de lama é a metáfora exata, e trágica, do país.

Dois ingredientes interdependentes merecem destaque, porque estão no centro da dimensão política da crise: a epidemia de ódio e a natureza totêmica das identidades partidárias. Pretendo identificar suas origens recentes, descrever riscos de curtos-circuitos com clivagens estruturais e indicar caminhos alternativos, inspirados em Hélio Oiticica e no legado tropicalista.

A meu juízo, o aspecto original da Rede Sustentabilidade, além de sua agenda especificamente sócio-econômica-ambiental, consiste na introdução de um novo regime de alteridade, um novo padrão de relacionamento com a diferença, um outro modo de produzir identidade, cuja matriz são experimentos estético-políticos inovadores.

A história recente reduziu desigualdades mas reafirmou e acentuou a repulsa à política, dramatizada nas manifestações de junho de 2013, cuja pauta plural destacou a crítica às formas convencionais de representação –aliás, não só políticas como também midiáticas.

As jornadas de junho não inventaram a indignação no Brasil. Deram passagem à revolta acumulada. Soltaram as rédeas. Graças sobretudo à contribuição da violência policial, o ódio impôs-se. Passou a reger dias e noites. Conquistou seu lugar no centro de nossos altares. Deus e diabo de nossa comum veneração. Quem falar do Brasil e não tratar do ódio não respirou o ar das ruas. Mas a breve história do ódio, que exponencia a crise econômica porque inviabiliza qualquer esforço de concertação, não se escreve sem que se focalize a campanha eleitoral de 2014.

Tática bipolar
Em setembro de 2014, um mês antes das eleições, a tarefa dos marqueteiros do PT complicou-se muito. A morte trágica de Eduardo Campos e a entrada de Marina no páreo da disputa presidencial impediam a repetição da tática bipolar tradicional. A ideia de uma terceira via, com Marina, tornara-se ameaça real à vitória do PT. Isso significava que já não era viável para os estrategistas governistas jogar o velho jogo da bipolarização: nós contra eles, o povo contra seus opressores, o PT contra o PSDB, os trabalhadores contra os exploradores.

Marina caíra como um raio em céu azul, misturando as peças no tabuleiro. A solução foi sacrificar todos os escrúpulos e elevar a agressividade à máxima potência contra Marina, buscando confiná-la no mesmo lugar político ocupado por Aécio, de modo a que o esquema bipolar pudesse continuar a ser aplicado. A máquina petista voltou para ela todas as baterias. Valia tudo. Os pruridos todos foram cancelados. A antiga líder seringueira foi transformada numa espécie de besta-fera que entregaria o país ao capital financeiro. O neoliberalismo amazônico não deixaria pedra sobre pedra.

O objeto da crítica tornou-se alvo do ódio. Disputa eleitoral transformou-se em guerra política. Alternância no poder passou a significar o fim do mundo, a derrocada apocalíptica. Discordância política deixou de ser divergência legítima e própria ao regime democrático. Passou a ser motivo para condenação moral.

Contemplando esse contexto, entende-se melhor o inusitado da campanha de 2014: a intensidade do ódio que mobilizou a sociedade e degradou tantas relações. A campanha petista não inaugurou a epidemia de ódio, mas a potencializou. Se faltava conexão entre as ruas e as instituições, se não havia no mundo político representatividade e empatia popular, a campanha presidencial do PT percebeu o fio desencapado do ódio e o enlaçou a seu novelo, numa espécie de gambiarra espiritual.

As propostas partidárias eram menos importantes que a potência do ódio precipitado pela campanha de Dilma Rousseff. A virulência de seus ataques atraiu a pulsão agonística que já eletrizava redes sociais, a sociedade civil e os militantes. Eis aí o curto-circuito que dividiu o país ao meio.

Feitiço
O ódio, não encontrando, para sublimar-se e civilizar-se, passagem e tradução nos códigos institucionais, derramou-se para fora do campo da disputa política, com a intensidade que é de sua natureza. Por isso o Brasil teve a eleição mais passional, sem que houvesse identificação com os candidatos. Dilma nunca foi amada, mas acabou reeleita pelo ódio ao qual se soube conectar, alimentando-o e brandindo-o contra os adversários. O problema é que ninguém administra a intensidade, e o feitiço pode virar-se contra a feiticeira.

O ambiente na sociedade tornou-se agonístico, imantado pelo ódio e ordenado por polarizações. O racismo e as segregações vêm à tona em discursos regressivos, faixas voltam a evocar fantasias golpistas, nostálgicas da ditadura, as conquistas das últimas duas décadas suscitam reações de segmentos refratários ao convívio democrático.

Por outro lado, o governismo tenta aproveitar-se do revival da ultradireita para identificá-la com o conjunto das oposições, abrindo caminho para uma suposta unificação das esquerdas, que abraçaria o PT e lhe infundiria sobrevida, salvando-o de si mesmo e da simbiose com o PMDB. O espectro da dicotomia que regeu a campanha eleitoral de 2014 retorna à agenda.

Se a polarização passou a dar o tom, as identidades dos partidos que as reivindicam, não se limitando a agregar interesses de ocasião, tornaram-se mais intensamente tributárias do contraste binário: é difícil definir PT e PSDB fora de seu antagonismo, mesmo que tantas vezes ele seja enfatizado artificialmente. O mesmo aplica-se aos partidos socialistas de extração marxista como o PSOL. São os traços distintivos que caracterizam a classificação social totêmica. Essa lógica impera nas torcidas dos clubes de futebol.

Qual o contexto de fundo? Observemos o Brasil de uma perspectiva histórica.

O grande dilema brasileiro é o racismo. As desigualdades sociais de raiz econômica são vivenciadas no ambiente gestado por quatro séculos de escravidão. É o molde do racismo que dá forma às desigualdades, ao contrário da crença corrente.

A distância entre classes sociais no Brasil sempre foi marcada por um abismo mais profundo do que relações econômicas poderiam explicar, ainda que elas tenham participado de modo decisivo da estruturação desse quadro e continuem a fazê-lo.

Por sua vez, o universo político, incluindo sua institucionalidade cambiante ao longo do século 20, replicou a fissura nacional. O racismo está presente como linguagem inconsciente mesmo quando a cor não move, comove ou mobiliza, direta e explicitamente: por exemplo, no desconforto que a mobilidade ascendente provoca em certos círculos, impondo convívio mais democrático onde, tradicionalmente, nem sequer se colocavam como problema as interações entre desiguais.

Os rolezinhos serviram para dramatizar a nova geopolítica urbana que emergiu nas últimas décadas e trouxe à baila tensões antes recalcadas. O incômodo suscitado pela proximidade do Outro não é sinal de desigualdade econômica mitigada, mas reação típica à transgressão de um código oculto e segregacionista que rege a sociabilidade.

Esse mesmo veneno que intensifica e qualifica as desigualdades estende-se aos índios, aos povos originários, tidos como retratos do passado, manifestações primitivas da natureza, a qual, por sua vez, é tomada como realidade externa ao humano, objeto de deleite e contemplação, ou de predação –como se o humano não fosse natural.

Tropicalismo
O ponto de inflexão mais marcante de nossa história cultural, a meu juízo, chama-se Hélio Oiticica, descendente da antropofagia de Oswald de Andrade e um precursor do tropicalismo de Caetano, Gil e seus parceiros.

A melhor síntese desse processo inovador na cultura e no comportamento, na estética e na esfera pública talvez sejam os parangolés. Por essa trilha o Brasil abre as cortinas entre as cores e as descendências, estimulando um diálogo plural e criativo. Nessa via encontramos inspiração para experimentar novos tipos de relação horizontal e igualitária entre grupos sociais, tradições e indivíduos. Estão aí pistas para a produção de identidades não totêmicas na cultura, inclusive na cultura política.

Em 1964, Hélio Oiticica escreveu sobre o "estandarte", criação que problematiza a participação do espectador, e iniciou a exploração da dança como componente da estrutura da obra, entendida como ação.

No ano seguinte, a pesquisa conduziu à "capa", o parangolé, integrando a participação na estrutura-movimento da obra, feita para vestir. A obra desloca-se no corpo do espectador ou do protagonista da performance. O movimento situa a obra no tempo e no espaço, suscitando, em vez de contemplação, a "vivência mágica". Nesse momento, o espectador passa a ser chamado participador, como explica o artista em texto reunido em "Museu É o Mundo" (Azougue Editorial).

O parangolé é um manto ou uma capa em cores com divisões e faixas transversais, mas contínuas, lembrando a fita de Moebius ou uma peça justaposta a outra, ambas inacabadas, e sempre disformes e desequilibradas em relação ao corpo humano ereto. A incompletude sugere vazios a serem preenchidos pelo corpo, o que requer movimento. Um convite à dança.

Em 1965, Oiticica refletiu longamente sobre a dança, a desinibição, a superação de preconceitos, a revisão da relação corpo-espírito, o realinhamento liberador de ideias, ações e sensibilidade. Seu interesse voltou-se para a música, o ritmo, a coreografia popular abrindo espaço para a intersubjetividade transmutada em intercorporalidade –uma ambiência propícia ao exercício da relação "eu-tu" e sua metamorfose em um "nós" fusional, em cujo contexto a participação (em uma ação coletiva) e o pertencimento (a um grupo ou à sociedade) rearranjam o regime de distinções entre os indivíduos e entre estes e a coletividade, em paralelo à transmutação do espectador em protagonista.

A palavra parangolé –conversa fiada, papo sem importância, abobrinha– combina autoironia e referência ao coloquial, àquilo que nos diálogos é mais forte que o conteúdo intercambiado: o simples estar ali, lado a lado com o outro.

Devolvo a palavra a Hélio, que visitou a Mangueira fazendo circular os parangolés: "A derrubada de preconceitos sociais, das barreiras de grupos, classes etc., seria inevitável e essencial na realização dessa experiência vital. Descobri aí a conexão entre o coletivo e a expressão individual –o passo mais importante para tal– ou seja, o desconhecimento de níveis abstratos, de 'camadas' sociais, para uma compreensão de uma totalidade".

Oiticica também vestiu sua capa-parangolé, também atravessou seu penetrável e cumpriu seu rito de passagem. Ele menciona a transição em sua obra –que é também uma transformação pessoal. Esse caminho experimental desaguou na exposição-evento, "Tropicália", em abril de 1967, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro –que emprestou seu título à célebre canção de Caetano. Escreve ele:

"Criei como que um cenário tropical, com plantas, araras, areia, pedrinhas (numa entrevista com Mário Barata, no "Jornal do Comércio", a 21 de maio de 1967, descrevo uma vivência que considero importante: parecia-me ao caminhar pelo recinto, pelo cenário da 'Tropicália', estar dobrando pelas 'quebradas' do morro, orgânicas tal como a arquitetura fantástica das favelas –outra vivência: a de 'estar pisando a terra' outra vez)."

Quando traça a genealogia de sua exposição "Tropicália", Oiticica compõe uma linhagem que inclui desde a antropofagia de Oswald de Andrade até "a música popular urbana no Brasil, escolas de samba, macumba, candomblé, todos os mitos e festas populares do Brasil, principalmente os de origem negra e índia".

A súmula codificada por Oiticica seria desenvolvida pelo movimento tropicalista, especialmente por Caetano Veloso e Gilberto Gil. Acredito que haja no tropicalismo –entendido como gesto estético, existencial e político– algumas senhas que ajudam a abrir caminhos no labirinto das interpretações do Brasil, o que é indispensável à formulação política de futuros possíveis e desejáveis.

O gesto libertador (autorizador) era autoral, e convidava à participação. Valorizava o indivíduo, inscrevendo-o na comunidade. Caetano Veloso transformava-se ao cantar "Coração Materno", ao mesmo tempo que transformava a canção de Vicente Celestino.

O movimento de dupla mudança coincide com a interpretação da antropofagia oswaldiana. O elemento belicista cede lugar ao convívio sem acomodação mútua, sem recíproca neutralização; ao contrário, cede lugar ao convívio envolvendo mútua ação transformadora. Essa é a linha evolutiva da música popular brasileira de que fala Caetano: em vez de linearidade sequencial e aperfeiçoamento progressivo, linha e evolução significam ampliação do espectro de abrangência da interlocução criativa e expansão do repertório de realizações e possibilidades.

Mais: significa relação entre autores e obras em um circuito dinâmico, aberto e inclusivo de trocas. Significa a sucessiva extensão da roda de reciprocidade inspiradora e a potencialização do diálogo crítico que, mesmo nas diferenças e tensões, valoriza os interlocutores, reafirma o pertencimento comum a uma linhagem e a reinventa, renegociando a cada passo seu sentido e suas implicações.

O povo negro, o samba, as tradições populares, as novas formas do rap, do hip-hop, do funk, nada do que é musical e mexe com o corpo e a alma permanece indiferente à roda de bambas, onde sempre cabe mais um(a). Nada de geleia geral. Polifonia, diferenças, choques, mas sempre no circuito das trocas, que a internet ampliará e requalificará.

A tal ponto se intensifica e expande a pulsão produtiva da cultura popular brasileira, especialmente em sua vertente musical, esticando os fios de ligação da rede –como para tirar som da tensão–, que já não tem cabimento falar em sincretismo, porque seu contrário não faz mais nenhum sentido. Pureza não há e, por isso, a geleia geral como categoria de acusação esgotou o prazo de validade.

A "continuidade" e a afirmação culturalmente heroica da individualidade e de seu gesto livre tematizam tacitamente, revertendo-a, a divisão profunda instalada pela escravidão, recalcada pela memória social e insuficientemente desconstruída pelo igualitarismo democrático –plasmado na Constituição de 1988.

Entretanto, registre-se que nenhum avanço haveria sem a democratização institucional e a participação dos movimentos negros, como entendeu nosso herói civilizador Abdias do Nascimento. Dramatizando a autopoiesis da individualidade solidária e participativa e recusando clivagens excludentes (símbolos indiretos da grande violência brasileira, a escravidão), o tropicalismo foi e ainda é fundamental para a história dos direitos humanos no Brasil, para a metabolização cultural, não dos conceitos intelectuais, mas dos sentimentos, dos valores e das experiências que lhes dão sentido.

Pode ser também seminal para a renovação da política, se a pensarmos com P maiúsculo e a inscrevermos na dinâmica evolutiva e dialógica de nossa cultura, aberta à etnologia e aos saberes tradicionais, visceralmente avessa ao racismo e aos preconceitos. De meu ponto de vista, está aí a matriz da Rede Sustentabilidade, cujo propósito é promover mudanças na cultura política, ambição superior ao desejo de poder.

O primeiro passo é falar de política de outra maneira, com referências que abram canais para interlocuções inusitadas. Assim, (quem sabe?) desnaturalizamos o que se toma por realidade imutável. Por exemplo: na política, todos são iguais. Ou: não há como mudar o Brasil, nem como vencer o racismo sem ódio e ressentimento, respeitando as instituições democráticas. Ou ainda: não há como domar a violência sem violência. Ou: no atual ambiente político polarizado não há espaço para concertação transparente e republicana.

Agitar parangolés em meio às sombras depressivas da era Cunha, eis aí um bom começo. Nada como fazer soar o A de arejar.
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Luiz Eduardo Soares, 61, é professor de ciência política da Uerj, foi Secretário Nacional de Segurança Pública em 2003 e é autor de "Rio de Janeiro: Histórias de Vida e Morte" (Companhia das Letras).

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