- O Globo
Uma festa de gala para a democracia brasileira. Cármen Lúcia assumiu a presidência do Supremo em estilo muito próprio, de comportamento, mas, sobretudo, literário. Em momento de conturbado clima político e social, deixou para o decano Celso de Mello e para o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, as referências mais diretas aos casos de corrupção que abalam a sociedade, e tratou de conceituar o que entende por Justiça, conceitos que balizarão a gestão à frente da mais alta Corte.
Começando por saudar “o cidadão brasileiro”, colocando-o no topo da hierarquia das autoridades que lotaram as dependências do STF, a nova presidente do Supremo deixou claro, em linguagem às vezes figurada, às vezes objetiva, mas com a suave severidade que lhe é peculiar, que, se o sistema judiciário não serve ao cidadão, ao jurisdicionado, com presteza e eficiência, não faz Justiça.
Com sinceridade contrastante com pompas de cerimônias que geralmente relegam a 2º plano a realidade, em troca de comemoração formal, Cármen abriu mão da festa após a posse pois considera que o momento não é para comemorações, e o Judiciário ainda está a dever muito à sociedade. A melhor maneira de comemorar é acelerar os trabalhos para conseguir que o STF, como todo o sistema judicial brasileiro, chegue ao cidadão com celeridade, garantindo o cumprimento da lei.
“Minha responsabilidade é fazer acontecer as soluções necessárias e buscadas pelo povo brasileiro. Estamos promovendo mudanças, e é preciso que elas continuem e cada vez com mais pressa, diminuindo o tempo de duração dos processos, sem perda das garantias do devido processo legal, com amplo direito de defesa e garantia do contraditório. Mas com processos que tenham começo, meio e fim e não se eternizem em prateleiras emboloradas”, disse, indicando que a tendência do STF será manter a decisão de cumprimento de penas a partir da condenação em 2ª instância.
A nova presidente do STF fez questão de dar sua marca nas citações literárias do discurso — citou Carlos Drummond, Paulo Mendes Campos, Guimarães Rosa e Cecília Meireles, a única não mineira do grupo, e convidou Caetano Veloso para tocar o Hino Nacional — e exemplificou sua visão de mundo com frases como “o cidadão quer sossego, trabalho, trilhas livres para poder sonhar”, ou, como diz a música, “não queremos só comida, queremos comida, diversão e arte”. Fez homenagem à escritora Nélida Piñon, secretária-geral da Academia Brasileira de Letras, que representava.
O tom político propriamente dito surgiu de vez em quando, como na frase “O tempo é também de esperança. Homens e mulheres estão nas praças por um Brasil mais justo. Cansamos de ser o país do futuro”. Mas na maior parte das vezes tratou da grande política, como ao dizer: “Lei não é aviso, pois deve ser cumprida por todos. A História de cada povo ele mesmo a constrói. Justiça não é milagre, e fazer justiça não é ciência. Constituição não é utopia, cidadania não é aspiração”.
Coube ao decano Celso de Mello, como tem acontecido nos recentes julgamentos, as frases mais cortantes sobre a situação atual do país. “Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube: eis o 1º mandamento da moral pública”, disse ele, que se referiu aos “profanadores da República”, aos “marginais da República”, aos “demagogos da República”, muitos presentes à solenidade, alguns em lugares de destaque.
Referindo-se às “práticas delituosas — que tanto afetam a estabilidade e a segurança da sociedade, ainda mais quando perpetradas por intermédio de organizações criminosas”, salientou que elas “enfraquecem as instituições, corrompem os valores da democracia, da ética e da justiça e comprometem a própria sustentabilidade do Estado Democrático de Direito, notadamente nos casos em que os desígnios dos agentes envolvidos guardam homogeneidade, eis que dirigidos, em contexto de criminalidade organizada e delinquência governamental, a fim comum, consistente na obtenção, à margem das leis da República, de inadmissíveis vantagens e de benefícios de ordem pessoal, ou caráter empresarial, ou, ainda, de natureza político-partidária”.
Coube a Janot falar da Lava-Jato, que, diz ele, nos fez descobrir “a latitude exata do entrocamento entre o submundo criminoso da política e o capitalismo tropicalizado de compadrio, favorecimento e ineficiência”.
Janot, diante de vários réus, indiciados e investigados na plateia, denunciou: “Tem-se observado diuturnamente um trabalho desonesto de desconstrução da imagem de investigadores e de juízes. Atos midiáticos buscam ainda conspurcar o trabalho sério e isento desenvolvido nas investigações da Lava-Jato”.
O início da era Cármen Lúcia no Supremo foi uma festa de gala para a democracia brasileira.
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