segunda-feira, 27 de março de 2017

Subsidiando a festa | Fernando Limongi

- Valor Econômico

Proposta de reforma política é prova de desfaçatez

A temperatura em Brasília não para de subir. Difícil encontrar imagem mais completa do que tem habitado a cabeça da elite política brasileira do que as farpas endereçadas por Rodrigo Janot a Gilmar Mendes. Foram o ponto alto das últimas semanas. Janot se esmerou e conseguiu bater Romero Jucá e sua douta referência aos Mamonas Assassinas.

Neste ambiente elevado, continua a discussão da reforma política, tida e havida como urgente e necessária. A classe política se aproveita das "verdades autoevidentes" vendidas à opinião pública esclarecida para obter sua sobrevivência. A última delas é que o financiamento público das campanhas seria a condição para estancar a corrupção.

Políticos se corromperiam porque precisam correr atrás de recursos para pagar suas campanhas. Se fossem independentes financeiramente, não seriam engolfados pelos "interesses" que aportam recursos para elegê-los. O argumento é velho e batido: a necessidade induz a corrupção. Apenas os que contam com recursos próprios para se manter seriam infensos aos apelos escusos.

O que os políticos reivindicam é o que todos pedem a Deus: vida tranquila e assegurada dos percalços da luta pela sobrevivência. Se contarem com recursos públicos, políticos terão vantagens sobre os que querem entrar na vida política. Ou melhor, como se define quem tem direito a receber recursos?

O financiamento público de campanhas cria barreiras à entrada, limitando a competição política, protegendo toda a classe política de desafiantes potenciais. Por isto, a proposta une a todos, PMDB, PSDB e PT.

Neste debate, ignora-se que os políticos brasileiros já contam com polpudas transferências estatais para financiar suas despesas. Já temos financiamento público de campanhas. Há o Fundo Partidário e há o Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE). Não é pouca coisa. Imagine se os partidos tivessem que pagar pelo tempo de rádio e televisão que o HGPE lhes garante?

A proposta em discussão deve ser lida pelo que é: os políticos estão pedindo mais dinheiro. A questão, portanto, é se os contribuintes querem ou não ampliar o montante de recursos transferidos aos políticos.

Não é a primeira vez que o pedido é feito. Os argumentos e as justificativas são os mesmos feitos no passado. As juras de bom comportamento tampouco são novidades. Quando adotado, o HGPE foi justificado como o recurso necessário para neutralizar a influência do poder econômico sobre a política. Contando com o acesso franqueado ao palanque eletrônico, argumentaram seus defensores, todos os partidos políticos passariam a contar com os meios para disseminar suas mensagens. A verdadeira política, a programática, prevaleceria.

O HGPE é o eixo que movimenta as campanhas eleitorais no Brasil. O tempo de rádio e televisão concedido aos partidos foi verdadeiramente generoso e não encontra paralelo no mundo. Partidos têm como se comunicar de forma direta com os eleitores. Chegam à sala de visita com um esforço mínimo. O HGPE facilitou a tarefa de conquistar votos e fazer campanhas, mas não entregou a prometida independência dos interesses econômicos.

Em lugar de baratear as campanhas, o HGPE gerou necessidades que contribuíram para encarecê-las. O tempo concedido pelo Estado vem sem conteúdo. Partidos têm que produzir o programa, preencher o imenso espaço de tempo disponível e isto custa dinheiro. Muito dinheiro. Quanto maior o HGPE, mais recursos os partidos terão que arrecadar.

O HGPE criou ainda uma distorção extra. Para coibir o poder econômico, a legislação veda que candidatos comprem tempo de rádio e televisão. Em tese, cada partido contaria somente com o tempo que a legislação lhes reserva, que é uma função do número total de partidos (a menor parte) e das cadeiras que cada partido controla na Câmara dos Deputados (a maior parte).

As coligações, contudo, funcionam como uma grande câmara de redistribuição deste recurso finito, escasso e essencial para conquistar votos. Ao se juntar a uma coligação, o partido transfere o seu tempo no HGPE ao "cabeça da chapa". Transfere é claramente um eufemismo. Vende talvez seja o termo mais adequado. Marcelo Odebrecht, que não tem papas na língua, se referiu desta forma aos recursos que carreou ao caixa dois da campanha de Dilma.

O fato é que há um mercado negro de compra e venda de tempo do HGPE. Partidos têm assegurado recursos públicos que podem dispor como se privados fossem. Na realidade, é a garantia do acesso ao HGPE e ao Fundo Partidário que justifica a sobrevivência de partidos com escasso ou nenhum apoio entre os eleitores. Mesmo sem votos, partidos contam com recursos que os demais valorizam e estão dispostos a pagar para usar. O HGPE é a raiz da crescente fragmentação partidária, mas este é assunto para ser desenvolvido em outra oportunidade.

O fato é que não estamos partindo do zero. Não se trata de adotar o financiamento público de campanha. Trata-se de ampliá-lo. Os resultados perversos do HGPE indicam que é preciso refinar o debate, indo além de propostas baseadas em argumentos simplistas e maniqueístas. O financiamento público de campanha não é um antídoto à corrupção. O contribuinte já subsidia as despesas eleitorais e os resultados estão longe de justificar a sua ampliação. Antes o contrário.

Na forma como vem sendo defendida, a proposta não passa de mais uma prova do oportunismo e desfaçatez da classe política brasileira. Pega em flagrante delito, passa a culpa adiante e pede recursos alternativos para manter o vício. O cinismo não tem limites. Se a proposta passar, Romero Jucá não terá razões para mudar suas predileções musicais. Tampouco cessarão as os banquetes palacianos em que Rodrigo Janot é persona non grata.

*Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap

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