quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Marco Aurélio Nogueira: Um julgamento para flertar com a História

- O Estado de S. Paulo

Desçam todos, por favor. Faremos uma pausa.

Passado o dia de hoje, 24 de janeiro, não haverá novo tempo nem outra época. A vida será a mesma. Com ou sem condenação, a democracia permanecerá, as regras do jogo não serão alteradas, as liberdades não falecerão, eleições continuarão a acontecer. Entre choros, palmas e velas, a institucionalidade jurídico-política prevalecerá, radicalismos à parte, que fazem parte do jogo. A viagem seguirá, após a parada obrigatória. Passageiros continuarão inquietos e divididos, mas seguirão em frente, refrescados uns, pilhados outros. O destino ainda não será vislumbrado, mas todos saberão que ele está logo ali, nas urnas de outubro.

Passado o julgamento, alguma redefinição terá de se impor, ainda que o clima de dramatização persista. Não mais o crime, a culpa ou a inocência, mas o futuro dos personagens, seu potencial e sua razão de ser. Reiterada a condenação de Lula, o PT judicializará a política, concentrando-se numa discutível batalha jurídica a ser travada nos tribunais. Absolvido o ex-presidente, o partido será vitaminado e voltará a ter chances de mostrar o que propõe para o país, além de Lula.

A tese partidária é que, com a condenação, “não teremos mais normalidade institucional no Brasil”, como diz Gleisi Hoffmann, sem se dar conta do tamanho das labaredas que carregam suas palavras. A perspectiva é tão burra politicamente que não é de se acreditar que todos os petistas pensem do mesmo jeito. Afinal, se as eleições serão uma “fraude”, como reza a cartilha, o certo seria ignorá-las. O partido, porém, nem pensa nisso.

O fato, mal processado sobretudo pelos petistas, é que Lula é só a ponta de um gigantesco iceberg, no qual se abraçam políticos de praticamente todos os partidos brasileiros, de centro, direita e esquerda. Todos estão sujos, mas só Lula estaria a pagar o pato? O problema é que sem Lula a esquerda não sabe se orientar. A direita tem vários nomes, além de ter, também, fortalezas muito mais poderosas para resistir ao cerco da Lava Jato.

A esquerda não pode cometer deslizes de corrupção, nem falcatruas, nem levar vantagens pessoais, nem trambicar com os poderosos, nem manter relações promíscuas e não transparentes com quem quer que seja. Se faz isso, deixa de ser esquerda, converte-se numa vertente degenerada da esquerda, tendo ou não consciência dessa opção.

A esquerda dominante não admite isso. Minimiza a sujeira que acumulou quando esteve no poder. Alegar que não há provas suficientes nem crimes é fazer como o avestruz. É desrespeitar a inteligência alheia.

Não se trata somente de Lula. Ele está no centro, domina a planície, é tratado como um semideus imune a críticas. É visto como um raro talento político e os mais empolgados a ele se referem como “o maior líder popular da história”. Lula não se constrange de ser mitificado, talvez na expectativa de que a idolatria ajude a iluminar o caminho da salvação. Não admite ter errado e dormido no ponto no caso do tríplex: como então, uma pessoa rica não pode comprar um apartamento de 1 milhão de reais? Sua opção por não ter propriedades imobiliárias à altura de suas rendas e posses levanta mais suspeitas que aplausos, e seus advogados erraram feio ao não alertá-lo para isso.

O problema é que os que patrocinam e endeusam Lula comprometem parte importante do campo progressista. Não se dão conta disso. Engajam-se, PT à frente, numa viagem de destino impreciso, mas que não poderá seguir roteiros já pisados anteriormente. Ficam paralisados, como a rã diante da luz. Mas se mexem sem cessar, sem um foco claro e sem uma mensagem sintonizada com as carências do pais.

Deixam de perceber que, se não souberem ir além das idiossincrasias e agruras do líder, se não forem maiores do que ele, perderão autoridade e força moral.

Dilemas existenciais
Seria então o momento ideal de se pôr a mão na consciência e resolver alguns dilemas de tipo existencial. Há perguntas incômodas, que não querem calar.

Não haverá mesmo opção melhor, em termos políticos? Não valeria a pena virar o disco e ouvir as canções do lado B? Quem ganhará e quem perderá com a insistência em manter tremulando o estandarte da redenção? Do que necessita o País real? De que homens e mulheres, de que ideias, valores e programas, de quais compromissos? Vamos permanecer pendurados no mesmo mastro, alegando que nele se decide o futuro da Humanidade, que nele estaria inscrito o segredo da democratização brasileira? É isso que chamamos de Esquerda do século XXI?

O principal dilema de Lula e do PT é saber o que fazer no dia seguinte. Não há plano alternativo se Lula for impedido de concorrer. A estratégia é esticar a corda até o limite, manter o mito vivo e sensibilizar o eleitorado para, eventualmente, receber de braços abertos o ex-presidente sofrido e calejado, ou um seu sucessor, fresco de tinta. O espectro de uma segunda Dilma passeia pelo campo petista, mas nem o partido nem a militância parecem preocupados com isso. Para eles, a política deixou de ser praticada com os olhos no interesse mais geral. O importante é salvar o patrimônio acumulado, mantê-lo como um trunfo, um recurso para batalhas vindouras. “O PT vai para o tudo ou nada com Lula”, falou Jilmar Tatto, vice-presidente do partido em São Paulo.

Não se trata de defesa ou solidariedade ao velho chefe cansado de guerra. Mas de estratégia política. Com seus limites, sua frieza e sua indiferença pelas consequências. O PT não delineia qualquer alternativa e nem ela surge a partir de fora dele.

Há outro dilema, não exclusivo do PT e ainda mais decisivo. Quem pode determinar se Lula é ou não culpado? Nas democracias, é o sistema judicial quem decide isso. Sim, Moro, os tribunais, o TRF-4, o STF – essas instituições mesmas, que estão sendo postas em dúvida pelos defensores do ex-presidente. O dilema, aqui, é se se deve ou não aceitar tal prerrogativa institucional. Elas só seriam legítimas se prendessem todos os larápios ao mesmo tempo, de uma só vez? Ou também é razoável que se hierarquizem investigações e penas? Pessoas especiais devem ter tratamento especial? Devemos ou não respeitar a Justiça, ou ela está irremediavelmente maculada pela “direita” e pelo “grande capital”?

A melhor condenação que Lula poderia receber seria mesmo nas urnas: o povo desconstruindo o mito, mostrando ter assimilado a mensagem da Lava Jato, fazendo livremente suas escolhas. Mas, caso venha a concorrer estando condenado judicialmente, o precedente será complicado demais: mostrará que a Justiça não tem força moral e institucional para controlar os demais poderes, que não há mais o império da lei, que a própria lei não vale para todos.

Se ficar o bicho come, se correr o bicho pega. Mas é o que se tem para hoje, na conturbada área da esquerda dominante. Tema para ser considerado com atenção.
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Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política na Unesp

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