- O Estado de S.Paulo
Seguramente, há que reduzir o arbítrio das instituições judiciais e que transformar o vigor republicano que delas provém em reformismo democrático
Como responder a isso? As crises políticas são muito difíceis de analisar, mesmo quando encerradas. Que dizer, então, quando ainda estão em curso?
Nas crises se quebram as hierarquias que estruturam a vida política. Os atores – chefes de poder, lideranças, partidos, movimentos sociais, etc. – não conseguem ter uma razoável antevisão de como cada um vai agir e reagir diante dos posicionamentos dos outros. Aumenta muito a incerteza, já presente nos momentos normais da política.
E quanto à crise política atual? Acho que não há dúvida de que ela está pondo em jogo a democracia de 1988. Mas de que maneira, se todos a defendem? Alguma força maléfica a está atacando desde fora? Ou o funcionamento de suas próprias instituições acabou por levar ao evidente desequilíbrio que precisamos superar? Mas como?
O sociólogo Luiz Werneck Vianna, no livro de entrevistas Diálogos gramscianos sobre o Brasil atual, lança luzes fortes sobre o período difícil que atravessamos. As entrevistas cobrem um período que começa em 2007 e vai até final de 2017. Surpreendentemente, para análises feitas ao longo de dez anos, há no livro notável consistência. Com efeito, há que reconhecer que o livro mantém uma perspectiva analítica e acaba por gerar interpretações agudas do processo que vivemos. Em vez de resumi-las – desmanchando o prazer dos que quiserem conhecê-las por si mesmos – destacarei apenas duas delas, especialmente relevantes para a análise e superação do presente.
Corrupção, moralismo e instituições judiciais. Desde as primeiras entrevistas do livro – de meados de 2008 –, Werneck Vianna chama nossa atenção, a propósito das acusações de corrupção contra Daniel Dantas e Eike Batista, para a forma espetaculosa e a índole messiânica das intervenções da Polícia Federal, do Ministério Público, do Judiciário. Longe está o entrevistado de desqualificar o combate à corrupção. O problema está em converter esse combate em centro dos problemas nacionais, exacerbando o moralismo da classe média. Com isso, as questões centrais da política – a mediocridade de nosso crescimento econômico, a concentração extrema da propriedade, a desigualdade social e a má representação política – ficariam relegadas a segundo plano.
Claro que o julgamento do mensalão e, especialmente, a Operação Lava Jato, revelando o alto grau de corrupção vinculada ao financiamento das campanhas eleitorais, exacerbaram o ativismo judicial, acabando por produzir um desequilíbrio institucional entre os poderes da República, em favor do Ministério Público e do Judiciário. O moralismo tem levado a desqualificar os poderes que devem sua legitimidade ao voto popular e, portanto, estão no cerne da democracia. Este ativismo – e os abusos que ocasiona – não se dá conta de que, apesar dos pesares, é a política que pode superar nossas deficiências, acentuando a dimensão democrática e republicana do regime de 1988.
O problema não está, pois, na Lava Jato. Ela tem função republicana, de denúncia do imbricamento espúrio entre a ordem pública e a esfera privada brasileira. Procuradores e juízes querem romper tal esbórnia, retomando – agora em nome da moralidade – o impulso reformista dos antigos tenentes. Tornaram-se “tenentes de toga”, que veem no Direito uma forma de transformar a vida social, de purificá-la, de construir uma verdadeira República. Não se dão conta de que é a política que, apesar dos pesares, pode reorganizar o Estado, acentuando sua dimensão democrática e republicana.
O ativismo judicial moralista não deve – em nome da ética da convicção – menosprezar as consequências mais amplas de suas decisões, deixando de lado a ética da responsabilidade. Conduzir coercitivamente para interrogatório um ex-presidente da República, tentar denunciar outro, recém-empossado, com base em denúncias pouco investigadas, bloquear com sucesso uma nomeação de ministro sem amparo constitucional e permitir o “vazamento” de denúncias e tantas outras manifestações contra políticos ajudam a desqualificá-los, produzem resistências, mas não estimulam a reforma das instituições políticas. A crítica não atinge o conjunto dos magistrados e dos procuradores nem descrê de sua capacidade de mudar, como atesta a substituição de Rodrigo Janot por Raquel Dodge – saudada como uma lufada de ar fresco.
A democratização, a esquerda e o Estado. Mas quais forças podem transformar a política brasileira? Certamente, as esperanças de Werneck estão na atuação das forças de esquerda. Tais esperanças, porém, têm sido frustradas porque elas abandonaram o caminho e as tarefas de organização e mobilização autônoma das classes subalternas. Este caminho que empolgou os que aderiram ao Partido dos Trabalhadores (PT) nos anos 1980 foi, aos poucos, abandonado em favor da composição com as forças políticas tradicionais, patrimonialistas. Depois, com a ocupação do poder central pelo PT, houve composição não só com as forças tradicionais – sem as quais não se governaria –, mas também se estimulou a absorção dos movimentos sociais e associações autônomas no Estado. Eles tornaram-se penduricalhos, dependentes do poder e dos seus recursos. Enterrou-se no governo Lula a reforma da legislação varguista, que eliminaria o imposto e a unicidade sindical. Foram mantidas as mesmas regras que perpetuam a dependência do Estado. E ainda se deu uma fatia do imposto sindical para as centrais sindicais. Retomou-se, assim, a idolatria do Estado, nascida da experiência fascista e da crença soviética no Estado libertador. A esquerda só retomará seu vigor se escapar ao estatismo e se orientar para a autonomia.
Por fim, como sairemos desta crise? Seguramente, há que reduzir o arbítrio das instituições judiciais e que transformar o vigor republicano que delas provém em reformismo democrático. Estas são algumas das muitas observações com que o sociólogo Werneck Vianna nos ajuda a ver luzes no fim do túnel.
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*Professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo
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