domingo, 29 de julho de 2018

Luiz Carlos Azedo: Da arte de ensacar demônios

- Correio Braziliense

“Eles estão soltos, e não será uma tarefa fácil lidar com isto: os fantasmas do velho positivismo autoritário rondam o Palácio do Planalto, à direita e à esquerda”

“Soltar o demônio da revolução é fácil. Difícil é recolhê-lo. É o que fazemos agora, cumprindo nosso dever cívico”, a frase do presidente Prudente de Moraes (1841-1902) ao amigo Bernardino de Campos, seu ministro da Fazenda, logo após tomar posse, sintetiza a situação em que encontrou o país em novembro de 1894. O governo autoritário de Floriano Peixoto por muito pouco não se transformou na ditadura positivista sonhada por Júlio de Castilhos e Benjamin Constant, que viria a se materializar mais tarde, com Getúlio Vargas (de 1930 a 1945) e o regime militar (1964-1985). Floriano não passou o cargo ao sucessor, gesto que mais tarde seria repetido pelo presidente João Batista Figueiredo, ao ser sucedido por José Sarney (MDB).

Natural de Piracicaba (SP), Prudente foi o primeiro político republicano de verdade a governar o país, em meio à grave crise econômica e a muitas turbulências políticas. Jorge Caldeira, em História da Riqueza no Brasil, cinco séculos de pessoas, costumes e governos (Estação Brasil), nos reposiciona em relação aos episódios da época, entre os quais o desastre que foi o “florianismo” e a influência nefasta do positivismo para a economia e a política, sobretudo em razão da tutela dos militares sobre o Estado e deste em relação à sociedade. Prudente governou o país sem recorrer ao estado de sítio nem censurar a imprensa; apostou na transparência de atos de governo, no bom senso da opinião pública, no federalismo e na tradição da nossa política local, que, desde os tempos coloniais, governava as cidades.

Não foi um governo fácil, porque dele teve que se afastar devido a uma cirurgia na bexiga, muito complexa àquela época. Seu substituto, o vice-presidente Manoel Vitorino, deixou-se influenciar pelos positivistas ao mandar o Exército intervir em Canudos, a pretexto de combater os monarquistas, o que se revelou uma grande tragédia. Coube ao florianista Moreira Cesar, carniceiro da revolução federalista em Santa Catarina, na qual mandou fuzilar 185 pessoas, no quilômetro 65 da ferrovia Curitiba-Paranaguá e nas fortalezas de Anhantomirim e Araçatuba, protagonizar o vexame principal. Euclides da Cunha, n’Os Sertões, descreve em detalhes o fim trágico do militar, que acabou esquartejado pelos jagunços no sertão da Bahia, depois de derrotado à frente de um exército de 1500 homens bem armados.

No dia da morte do coronel “Treme-terra”, 4 de março de 1897, Prudente reassumiu o poder, em meio a protestos populares e ataques de jornalistas de grande prestígio, como Nilo Peçanha, Alcindo Guanabara, Paula Nei e José do Patrocínio. Não teve alternativa a não ser despachar o novo ministro do Exército, general Carlos Machado Bittencourt, para liquidar com o arraial de Antônio Conselheiro, episódio que traumatizou a nação. Bittencourt morreu num atentado, no qual foi alvejado ao salvar a vida do presidente da República. Nem assim Prudente recorreu ao estado de sítio. Com seu prestígio, conseguiu derrotar o caudilho Júlio de Castilhos e eleger Campos Salles como sucessor. Ao deixar o poder, os demônios estavam todos ensacados.

Fantasmas
Aos trancos e barrancos desde o impeachment de Dilma Rousseff, o país chega às eleições presidenciais num quadro de grande imprevisibilidade. O futuro presidente da República terá uma tarefa muito parecida com a de Prudente de Moraes: enfrentar a crise fiscal e retomar o crescimento econômico, num ambiente em que a recessão aprofundou as iniquidades sociais do país. Sua principal tarefa política, porém, será ensacar os demônios novamente. Eles estão soltos e não será uma tarefa fácil lidar com isto: os fantasmas do velho positivismo autoritário rondam o Palácio do Planalto, à direita e à esquerda.

É do jogo democrático a narrativa autoritária nas disputas eleitorais, que precisam ser tratadas como tal. O que não é do jogo é a desestabilização das instituições políticas e a afronta à Constituição. É aí que a disjuntiva Lula-Bolsonaro entra em cena e protagoniza a radicalização política. Na velha dialética, representa a “unidade dos contrários”. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado a 12 anos e um mês de prisão por receber vantagens indevidas no exercício do cargo, por causa da Lei da Ficha Limpa (aprovada com os votos do PT, diga-se de passagem), está inelegível. Não se trata de jurisprudência do Supremo, como é o caso da execução de sua pena após condenação em segunda instância. A lei somente poderia ser revogada pelo Congresso.

Ocorre que o ex-presidente Lula não aceita as decisões judiciais, se diz vítima de perseguição da Operação Lava-Jato e lidera uma campanha política cujo objetivo não é apenas a sua liberdade, mas a manutenção da candidatura a presidente da República na marra, aproveitando-se do calendário eleitoral e dos ritos processuais. Seu objetivo é concorrer às eleições sub júdice, para emparedar o Judiciário e revogar sua prisão pelo “voto popular”. Quem ganha com isso? Em primeiro lugar, a recidiva do florianismo, representado pelo deputado Jair Bolsonaro (PSL), o ex-capitão do Exército que empolga setores conservadores da sociedade.

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