- O Estado de S. Paulo
É da ideia unitária que algum oxigênio poderá ser extraído e injetado na vida política do País
A unidade dos democratas avança com dificuldades.
As principais articulações em curso são eleitorais, haja vista as que envolvem o chamado “centrão”, cortejado por todos e agora associado a Geraldo Alckmin. Coligações são concebidas com os olhos no tempo de propaganda e na “repartição do poder”. São pragmáticas, tentando ser realistas. Diz-se que na mesa estão não somente cargos, mas também uma preocupação com a “governabilidade” do futuro presidente. O quanto será assim não se sabe.
O fundamental não é tratado com seriedade.
Refiro-me à necessidade de instituir um campo democrático que leve em conta as eleições mas vá além delas, comprometendo-se a qualificar a vida política, a ser um vetor programático de reorganização e governo da sociedade.
A renovação política é indispensável. O País não aguenta mais conviver com um sistema político - com seus partidos, sua cultura e suas práticas - que não acompanhou as mudanças que afetaram a estrutura da economia, a sociedade, o modo de vida. As mudanças trouxeram problemas novos sem que os antigos tenham sido resolvidos, formando, assim, um compósito desafiador.
Ainda não se compreendeu bem o quanto há de novidade no mundo atual. Como escreveu Ulrich Beck em seu livro póstumo, não se trata de um mundo forjado pelas mudanças típicas da modernidade capitalista, mas de um mundo que nasceu sob o signo da metamorfose: uma alteração na natureza da existência humana, no modo de estar no mundo, de imaginar e fazer política, de viver a vida.
Evidentemente, nem tudo está se metamorfoseando. Muitas mudanças são, na verdade, reprodução da ordem existente. Mas o importante é compreender o que foge da mera reposição, aquilo que transfigura e cria formas, práticas e expectativas. As lógicas se entretecem, ampliando os problemas e os desafios, mas também abrindo outras perspectivas.
Há um turbilhão pela frente. Precisamos resolver os problemas crônicos de nossa formação e administrar a metamorfose que desponta numa sociedade em que parece faltar a instância decisiva, a política. Sem melhor articulação, mais democracia e coesão, educação e inovação, o futuro ficará travado. Precisamos descomprimir a sociedade, reduzir as polarizações artificiais, ir além da reiteração discursiva esquerda versus direita. Não podemos nos entregar aos reptos “identitários”. Se continuarmos insistindo na lógica “nós” contra “eles”, correremos o risco de retroceder.
Se isso é minimamente razoável, como então pensar em avançar sem ajustes e adaptações, sem reformas nas estruturas e nas instituições, do mercado ao Estado? Necessitamos de uma reeducação geral, para aprendermos a lidar com o que é incerto e ainda não decodificamos.
O ritmo da mudança não é uniforme: muda-se mais depressa nas bases do que nas cúpulas, mais rápido na vida social do que na vida política.
Homens e mulheres têm sua vida sendo alterada, mas não sabem disso e não conseguem extrair disso todos os desdobramentos e exigências. A visão do mundo conserva muitos de seus pedaços presos a imagens tradicionais, que se dissolvem lentamente. O modo de produção transforma-se com rapidez, em silêncio, mas sempre com dor e sofrimento, impulsionado pela revolução técnico-científica e pela globalização do capitalismo. Arrasta consigo as relações sociais e o trabalho, e por essa via invade e reorganiza a vida familiar, os valores e as atitudes, o modo de agir, pensar e sentir.
O plano estatal, porém, resiste, entre outras coisas porque nele estão encastelados os interesses mais bem organizados, que se protegem e tentam bloquear as mudanças que lhes roubam o chão. São interesses que se enraízam em tradições provenientes de um passado que se repõe, embora esteja questionado pela vida. Um passado que identifica, fornece uma linguagem, legitima práticas e condutas. O sistema político é parte disso, e sua resistência à mudança pode impressionar, mas é compreensível.
A sociedade que se metamorfoseia esbarra, assim, numa estrutura de interesses que controla o Estado e dificulta o acesso à política pela população mais sintonizada com a contemporaneidade. O novo é forçado a negociar as regras do jogo com o velho, numa pendência que pode se estender por longo tempo.
É por isso que os candidatos que se querem avançados são levados a se aliar aos setores atrasados. O grito de “renovação” ecoa, mas não se traduz politicamente. O Congresso - visto com desconfiança pela população - não mudará sua composição nas próximas eleições. Os candidatos presidenciais, por sua vez, flertam com o passado, com o mundo que se dissolve e fornece votos, uns vociferando autoritarismo contra a democracia e se oferecendo como salvadores da Pátria, outros tentando abrir uma brecha na muralha.
A “velha” política mostra que é uma das faces ativas da política realmente existente. Não sairá de cena de um dia para outro.
Um campo democrático generoso e renovador é uma construção complexa. O fato de privilegiar mais o futuro que o imediato não o torna sedutor para fins eleitorais. A disposição de agir como uma força - uma ideia, uma causa, uma época - que atraia os democratas que estão espalhados, articulando-os e os unificando, colide com as conveniências e as vaidades dos que, em princípio, deveriam ser seus maiores animadores. O campo democrático precisa questionar os partidos e os procedimentos políticos, mas não tem como se dissociar deles.
Além do mais, sua mensagem não chega aos jovens, que são o dínamo da vida, e não chega porque sua música toca num tom para o qual os ouvidos jovens ainda não foram treinados.
A ideia unitária, em suma, precisa de tempo para frutificar, e o mundo metamorfoseado está marcado pela urgência. Ainda assim, é dela que algum oxigênio poderá ser extraído e injetado na vida política nacional. Talvez não vença no curto prazo, mas tem todo o futuro a seu dispor.
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*Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política e coordenador do núcleo de estudos e análises internacionais da Unesp
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