sábado, 14 de julho de 2018

Rosiska Darcy de Oliveira: Campeões do mundo

- O Globo

O resgate na Tailândia nos deu uma dimensão das reservas de compaixão que ainda restam quando o mundo parece dilacerado

Durante 15 dias, entrelaçadas em tempo real, uma festa e uma tragédia se desenrolaram diante de bilhões de pessoas eletrizadas por emoções opostas: a festa da Copa do Mundo na Rússia e o drama dos meninos na Tailândia. Um inesperado reencontro da Humanidade consigo mesma.

Em todos os cantos da Terra, os mais remotos, a Humanidade compartilhou alegria e tristeza, sentimentos contraditórios e fundadores. O que nos faz lembrar que a Humanidade, que nos parece às vezes um conceito abstrato, não só existe como é uma só.

Assistindo à Copa, o que primeiro chamou minha atenção foi a semelhança entre torcidas. Os closes que câmeras potentíssimas vão buscar nas multidões mostram nos rostos pintados de todos os matizes do arco-íris o pertencimento tribal traduzido nas expressões de angústia quando o goleiro está ameaçado por um atacante, o alívio de uns e o desespero de outros quando a bola rola para fora do campo. As explosões de júbilo nas vitórias, as lágrimas na derrota, os abraços dos vencedores, o abatimento dos vencidos, vestidos com cores, bandeiras e hinos que nos separam, são sempre os mesmos sentimentos, que nos aproximam. Peles, etnias, olhos puxados ou não, todos pertencem ao time da espécie humana.

A Copa do Mundo em que as diferenças se afirmam nas identidades nacionais, na verdade iguala a todos no denominador comum dos impulsos mais primários. Fantasiados de brasileiros ou coreanos, somos todos ao mesmo tempo potentes e desvalidos, somos a mesma forte e frágil humanidade. E temos os mesmos ancestrais, como revelam inequivocamente os gestos simiescos de todos os artilheiros quando logram um gol.

Foi essa mesma humanidade, vulnerável às emoções, que sofreu dias a fio com a imagem insuportável dos meninos magrinhos após nove dias de fome e frio, enterrados vivos em uma caverna, sem perspectivas de escapar. Essas imagens de pesadelo do time dos Javalis Selvagens — tão próximas dos piores fantasmas do inconsciente — também alcançaram todos os cantos da Terra e mobilizaram uma unânime solidariedade com os meninos e seu treinador, uma compaixão doída, uma vontade incrível de ajudar a tirá-los dali. Quem não podia nada, rezou. Quem não rezou, sofreu. Quem podia enviou socorro.

Os meninos saíram da caverna, renasceram numa espetacular operação de salvamento em que um mergulhador arriscou e perdeu a vida. Eram 90, 50 estrangeiros, voluntários. Estes terão o resto da vida para se orgulhar do que conseguiram e lembrar o pioneiro que morreu abrindo caminho.

O resgate na Tailândia nos deu uma dimensão das reservas de compaixão que ainda restam quando o mundo parece dilacerado, e a crueldade e a violência vêm se tornando a linguagem do convívio humano. O prefeito de Chiang Rai agradeceu, emocionado, a solidariedade internacional e atribuiu o sucesso da operação à capacidade de amar que existe nos seres humanos. Se ele tem razão, a saída de uma caverna pode ser o ponto de apoio de que precisava a alavanca da esperança.

A comunicação global, como ela é hoje, propicia essa presença de todos no que acontece mundo afora. Essa omnipresença exige muito do nosso psiquismo. A mídia põe em cena o espetáculo do mundo com seu cortejo de misérias, guerras e exílios, tempestades e terremotos, um nunca acabar de más notícias, que vêm provocando uma compreensível sensação de desalento. Por outro lado, essa exposição a tudo contribui para a construção de um ponto de vista da humanidade, um sentimento difuso de pertencimento em que nada do que é humano nos é totalmente indiferente. Ou, pelo menos, desconhecido. Não podemos alegar ignorância dos fatos.

Uma frase de Immanuel Kant, título de um livro de Isaiah Berlin, nos fala da madeira torta de que é feita a humanidade e alerta para o fato de que com essa madeira nunca se construirá nada reto. Visão lúcida que nos dá a devida dimensão de nossas tortuosas imperfeições. E, no entanto, as crianças escaparam, saíram vencedores a perícia dos mergulhadores e o esforço comum de todos que tinham alguma competência a oferecer. Sobretudo a coragem e a compaixão.

O que deveria nos tirar o sono?, perguntou o Premio Nobel Amartya Sen. E respondeu: as tragédias que podemos evitar, as injustiças que podemos reparar.

A Copa vai terminando, ensinando a ganhar e a perder. Em apenas duas semanas o mundo recuperou o fôlego, e a humanidade mostrou que com a sua madeira torta ainda consegue construir. Quem quer que ganhe a partida final de amanhã, os verdadeiros campeões do mundo terão sido os Javalis Selvagens.

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Rosiska Darcy de Oliveira é escritora

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