terça-feira, 27 de novembro de 2018

Bernardo Bertolucci cinema que transforma

Autor de filmes sobre política, sexualidade e transformações sociais e morais, diretor se consagrou para além de sua Itália natal e virou um dos maiores — e mais controversos — nomes do audiovisual da História

Fabiano Ristow | O Globo

Mestre do cinema italiano e mundial, Bernardo Bertolucci influenciou gerações de cineastas com trabalhos inovadores sobre política e sexualidade. Transformações sociais, o inconformismo diante da realidade e os dilemas da classe operária foram impressos com cores fortes — uma de suas marcas visuais mais lembradas — em filmes como “Último tango em Paris” (1972) , “1900” (1976) e “Os sonhadores” (2003). Por “O último imperador” (1987), uma de suas obras-primas, venceu os Oscars de direção e roteiro — ao todo, foram nove estatuetas entregues ao épico. Em 2011, recebeu uma Palma de Ouro honorária, em Cannes, pelo conjunto da obra.

Nascido em Parma em 1940, o diretor foi criado em uma atmosfera literária e artística que o ajudou a enxergar o mundo por meio de uma lente criativa. Seu pai era amigo do cineasta Pier Paolo Pasolini, que contratou Bertolucci, ainda com 20 anos, como seu assistente no filme “Accattone: desajuste social” (1961). No ano seguinte, Pasolini o convidou para assumir o projeto “A morte”, marcando a estreia de Bertolucci na direção. Era o início de um importante capítulo na história do cinema.

Já em 1970, recebeu sua primeira indicação ao Oscar pelo roteiro adaptado de “O conformista”, baseado em um romance de Alberto Moravia.

A fama mundial viria em 1972, com “Último tango em Paris”, um drama erótico protagonizado por Marlon Brando e Maria Schneider, que provocou um escândalo por uma cena de sodomia.

Para Nico Rossini, presidente do Festival de Cinema Italiano, que este ano fez sua 13ª edição, “Último tango em Paris” é a obra máxima que costuma representar grandes artistas. É um filme, diz ele, que quebrou a tradição de uma geração anterior de cineastas italianos, como Vittorio De Sica, Federico Fellini e Michelangelo Antonioni, por explorar sentimentos de forma “realista, agressiva e violenta”.

— Nos anos seguintes, Bertolucci abordou transformações sociais no mundo. Em “1900” (1976), por exemplo, contou a história dos trabalhadores italianos na virada do século para entender as estruturas familiares daquela época. E “O último imperador” olhava para a decadência da família imperial chinesa de modo a entender aquela realidade —avalia Rossini.

SEM ESTRELISMOS
Apesar do escândalo nos bastidores de “Último tango em Paris”, quem conheceu Bertolucci o descreve como um profissional amável, generoso e humanista.

O diretor brasileiro André Ristum, que trabalhou como terceiro assistente de direção em “Beleza roubada” (1996), afirma que o ambiente no set era de cordialidade absoluta.

—Ele conduzia a equipe e se relacionava com os profissionais sem estrelismos, e sempre de forma respeitosa e afetuosa — afirma Ristum, que atribui esse comportamento aos muitos anos que Berto lucci passou na psicanálise .— Uma vez ele me contou, num almoço em sua casa de praia próxima a Roma, que ele era o tipo de pessoa que faria terapia para sempre. E isso se refletia em seus personagens e roteiros, que exploravam a relação do “eu” com o mundo.

Quem faz discurso semelhante é Ruy Guerra, um dos pais do Cinema Novo e hoje professor da Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Os dois se conheceram em 1970, no Festival de Berlim, onde o italiano lançou “O conformista”.

—Foi uma pessoa afetiva e generosa com agente, cineastas jovens que conviviam com ele. Ele deixa uma filmografia exemplar, marcada pela mistura de criatividade com domínio da linguagem cinematográfica — diz Ruy Guerra.

Amigo de Bertolucci, o produtor Fabiano Canosa, que foi programador do Cinema Paissandu nos anos 1960, diz que o italiano “enamorou-se de toda a tribo brasileira do Cinema Novo”:

— Ele nos encantou, desde o primeiro filme que vimos dele, “Antes da revolução” (1964), numa cópia trazida diretamente do aeroporto nas mãos do (cineasta) Gustavo Dahl.

O último trabalho de Bertolucci foi “Eu e você” (2012), adaptação do romance de Niccolò Ammaniti. 

Ele era casado desde 1978 coma cineasta Clare Peploe. Morreu ontem em Roma, aos 77 anos, vítima de câncer. Bernardo Bertolucci foi um filho do cinema, mas com pai e mãe emprestados de outras disciplinas: o marxismo e a psicanálise. Foi em 1969, quando o diretor — filho mais velho de uma professora e de um poeta, nascido em 16 de março de 1941, durante o fascismo de Mussolini — se filiou ao Partido Comunista da Itália e passou a ver regularmente uma analista. Seu cinema foi e seria uma consequência desse encontro entre Marx e Freud. Bertolucci buscou, com sua arte, condenar a tirania do fascismo ao mesmo tempo em que expunha desejos e obsessões da burguesia da qual fazia parte.

Justamente no 1968 em que os jovens tomaram as ruas de alguns cantos do mundo para se fazerem ouvir, ele havia lançado no Festival de Veneza “Partner”, um filme inspirado em “O duplo”, de Dostoiévski, sobre um apaixonado professor de teatro que instiga seus alunos a se manifestarem politicamente.

Em 1964, já havia lançado “Antes da revolução”, contando a história de um estudante burguês que se apaixonou pela tia enquanto começa a se interessar pelo marxismo. Ambos os filmes expunham os temas caros a um seguidor do francês Godard e do italiano Pasolini: a transgressão, coletiva ou individual, utilizada como arma para se enfrentar o autoritarismo.

“O conformista” (1970), seu primeiro clássico, baseado no romance de Alberto Moravia, trouxe como protagonista um burocrata, com uma história de abuso homossexual na juventude, que age a mando do governo fascista contra um ex-professor comunista. Já “O último tango em Paris” (1972), outro clássico, foi a subversão da ideia do sexo como consequência de amor e comprometimento.

Para quem só se recorda da tal cena da manteiga de Marlon Brando em Maria Schneider, “O último tango” contava a história de um americano que se relacionava com uma francesa bem mais nova: eles transavam sem que pudessem revelar seus nomes, suas histórias, nenhuma intimidade que não fosse a conjunção de seus corpos. A censura odiou. A História o imortalizou.

O épico “1900” (1976) retratou a luta de classes na Itália com a lindíssima fotografia de Vittorio Storaro, um colaborador habitual de Bertolucci; enquanto o intimista “La luna” chocou com a relação incestuosa entre mãe e filho. “O último imperador” (1987) foi o filme que levou Bertolucci a Hollywood, vencendo nove Oscars ao retratar a biografia de Puyi, o nobre chinês que foi coroado ainda criança, mas acabou preso por uma década pela China de Mao Tsé-tung.

“O céu que nos protege” (1990), “Beleza roubada” (1996), “Assédio” (1998) e “Eu e você” (2012) lidaram com paixões, ciúmes e desejos. “Os sonhadores” (2003), por sua vez, foi a melhor representação recente dos temas que tornaram Bertolucci uma força do cinema. Nele, três jovens dividem um apartamento de Paris em 1968, enquanto bombas explodem nas ruas tomadas por outros jovens.

SEXO E POLÍTICA
Para o trio, sua expressão sexual era tão importante quanto a luta política. “Os sonhadores” abordou essa separação entre o interior de um apartamento rico que protegia seus moradores das preocupações sociais e o exterior de um mundo conflagrado pela necessidade de mudanças.

Num diálogo de “Os sonhadores”, o pai de um dos protagonistas expõe o que parecia ser o pensamento de Bertolucci: “Antes de poder mudar o mundo, você precisa compreender que você, você mesmo, é parte dele. Não dá para ficar de fora olhando para dentro.”

Morto ontem, aos 77 anos, Bernardo Bertolucci procurou em vida seguir o próprio conselho e buscou, através do cinema, olhar o mundo de dentro.

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