- O Globo
Desde sempre, governantes eleitos elencam barreiras novas para evitar erros do passado e controvérsias do presente
Em 2014, o manual de conduta elaborado pelo Tribunal de Contas da União visando a disciplinar os integrantes do governo Dilma Rousseff tinha 32 páginas. Composto por “10 passos para a boa governança”, o documento era tão genérico quanto foi inútil. Começava com “Escolha líderes competentes e avalie seus desempenhos”, terminava com “Estabeleça diretrizes de transparência e sistema de prestação de contas e responsabilidade”, e passava por temas como “Estabeleça a estratégia considerando as necessidades das partes interessadas”. Cada passo enunciado em dois parágrafos vinha seguido de uma breve receita prática intitulada “O que você pode fazer para dar esse passo?” Deu no que deu, em nada. Dependendo da espinha moral de cada servidor, quem era honesto continuou honesto, e quem quis roubar, roubou. Assim é e sempre será.
Na semana do Natal de 2018, o site Poder360 antecipou o manual de conduta elaborado pela equipe de transição do governo Jair Bolsonaro, a ser empossado na terça-feira. São quatro páginas dirigidas a quem ocupar cargo em comissão no governo federal, com algum detalhamento do que será permitido e o que será vedado. Dos 16 itens listados sob a rubrica orientações gerais, como a obrigatoriedade de informar à Comissão de Ética Pública alterações “relevantes” no patrimônio, parece faltar (ou ter sido retirado na hora da publicação), o item número 5. Pode também ser mero lapso na correria rumo ao poder.
O documento contempla vários tipos de conflitos de interesse à espreita do agente público, da eterna e mal resolvida questão do nepotismo à sempre eletrizante questão do uso de veículos oficiais, e vedações ao uso/divulgação de informações privilegiadas. Caberia, talvez, detalhar melhor a proibição de “manifestar-se publicamente sobre matéria que não seja afeita à sua área de competência”, mas de um modo geral o texto pretende servir de bússola para quem de bússola precisa ou para quem está intencionado a operar por entre suas porosas linhas.
Governantes anteriores também baixaram normas semelhantes, sempre endereçadas a quem já está nomeado para servir ao país. Tarde demais. Em 2008, coube ao então candidato presidencial Barack Obama introduzir nos Estados Unidos o que até hoje se revelou a melhor fórmula de evitar surpresas a um recém-eleito: ele submeteu um questionário draconiano a candidatos a postos-chave, antes de sequer iniciar sondagens de nomeação.
Desde sempre, governantes eleitos elencam barreiras novas para evitar erros do passado e controvérsias do presente. Nenhuma foi tão eficaz quanto o temido questionário de sete páginas e 63 perguntas elaborado pela equipe de Obama. Quem não se dispôs a passar por crivo tão invasivo, ou se considerou por demais importante para se submeter a tal inquisição, foi automaticamente eliminado. Alguns candidatos ao primeiro escalão contrataram advogados de peso para conferir as respostas e desativar eventuais lacunas nos documentos anexados. “Dou graças a Deus por não pleitear um cargo no novo governo”, admitiu à época Michael Berman, que trabalhara nas transições dos democratas Bill Clinton e Jimmy Carter.
O interessante é que a informação pessoal obtida através do questionário não se destinava a desqualificar automaticamente o candidato, apenas permitiu à equipe de transição avaliar os riscos que correria, em caso de confirmação futura. Para os examinadores de currículos, havia um mantra: nunca supor que ninguém mais vai descobrir. Se eles acharam algo, diziam, mais cedo ou mais tarde alguém de fora também vai desenterrar.
O questionário de Obama mergulhava não apenas nos dados pessoais e profissionais dos 800 candidatos a postos sujeitos à confirmação pelo Senado, como de seus parceiros e filhos adultos. Tudo retroativo a uma década: diários, identidades em redes sociais, registros de infrações mínimas (apenas multas de trânsito de menos de US$ 50 não precisavam ser elencadas), empregos, empréstimos, falências, negócios, filiação em clubes ou associações de perfil discriminatório — nada escapava.
E caso escapasse, restava a última pergunta, que englobava qualquer potencial de controvérsia: “Forneça qualquer informação, inclusive de familiares, capaz de sugerir um conflito de interesse ou de tornar-se fonte de constrangimento para você, sua família, ou para o presidente eleito”.
Sabidamente, é fácil responder a qualquer questionário com uma sucessão de mentiras ou omissões de verdades. Ainda assim, o método parece ter tido o desejado efeito dissuasório: Obama completou seus dois mandatos na Casa Branca sem escândalo de roubalheira, malfeito ou abuso de poder. Mesmo para quem faz um balanço final mitigado de sua presidência, este é um troféu que a cada dia de mandato de Donald Trump reluz mais.
Para quem gosta de exercitar a imaginação e teve a inteligência ofendida pela entrevista ao SBT de Fabrício Queiroz, o ex-sumido ex-assessor do senador eleito Flávio Bolsonaro intimado a explicar movimentações financeiras atípicas, o questionário Obama pode servir de passatempo. Está disponível na internet.
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