- O Globo
Estudioso de cinema, ex-ministro do Planejamento se aproximou dos cineastas através de Nelson Pereira dos Santos
Morreu semana passada o economista João Paulo dos Reis Velloso, e seu obituário, exposto nos jornais e na televisão com todo o respeito, esteve sempre incompleto. Ninguém deixou de informar que Reis Velloso foi ministro do Planejamento do general Ernesto Geisel, um dos presidentes da ditadura militar. Mas ninguém se lembrou de acrescentar que ele dedicou sua vida e sua carreira à busca de alternativas nacionais mais justas, democráticas, segmentárias e igualitárias para o crescimento do país.
Crítico de Delfim Netto, seu antecessor no comando da economia do país, Velloso o considerava responsável pelo “ovo da serpente”, o conjunto de ações que criara as dificuldades posteriores ao artificial “milagre econômico” do início dos anos 1970, quando se perdeu no horizonte a própria ideia de desenvolvimento nacional. Foi na correção desse rumo que ele criou a Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) e o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
Em 1988, fora do governo, Velloso montou o Fórum Nacional, espaço de debate sobre o Brasil, com discussões que envolviam vários aspectos do conhecimento em geral e da realidade nacional, em particular, como ele a cultivava criativamente. Sobretudo através da cultura nacional e do próprio cinema brasileiro, uma de suas paixões.
Enquanto ministro de Geisel, Velloso se preocupara em estabelecer, como uma das metas de seu ministério, um projeto cultural visando não só à produção de bens culturais, como também seu vasto consumo pela população. Os resultados dessas buscas repercutiram logo nos segmentos mais próximos do sistema de consumo, como as indústrias fonográfica, editorial e cinematográfica.
Sem censura política ou ideológica (os filmes estão aí para prová-lo), a Embrafilme, uma sociedade anônima de capital misto, sob a direção do cineasta Roberto Farias, durante a gestão de Velloso no ministério, produziu qualidade e sucesso comercial, com prêmios internacionais e uma participação de 35% a 40% do mercado interno, taxa que nunca mais voltamos a alcançar. Em determinado momento, a Embrafilme era, ao lado de duas das sete majors americanas, uma das três empresas de cinema mais bem-sucedidas em toda a América Latina.
Foi Velloso que imaginou e criou a Condecine, taxa sobre produtos audiovisuais que até hoje alimenta a produção do cinema brasileiro, sem recorrer ao Orçamento da União ou a outros recursos públicos. É essa mesma Condecine que, até hoje, sustenta os financiamentos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), da Ancine.
Mais tarde, já fora das estruturas oficiais, Velloso passou a organizar um Fórum Econômico para o Desenvolvimento, incluindo sempre nos debates a produção cultural, inclusive a da cultura popular produzida em favelas, periferias urbanas e pequenas concentrações no interior do país. Mais uma vez, ele se adiantava à ideia futura de Centros de Cultura, elaborada e executada bem depois por Gilberto Gil.
Velloso foi o primeiro homem público brasileiro a tratar a produção cultural, não apenas por sua importância simbólica, mas também como um concreto setor econômico do país. Ele ordenou ao Ipea, que acabara de criar, pesquisar o impacto da atividade em relação ao PIB. Pela primeira vez em nossa história, ficamos sabendo que a indústria cultural brasileira gerava entre 1,5 e 1,8% do PIB, com criação significativa de empregos e renda acima de outros segmentos industriais mais conhecidos e festejados. Foi graças a essa pesquisa que, nos últimos 30 anos, tornou-se possível estruturar de maneira mais produtiva os diferentes setores da indústria cultural.
Estudioso de cinema, Velloso se aproximou dos cineastas brasileiros através de Nelson Pereira dos Santos, com quem tinha ácidas discussões políticas e de quem nunca deixara de ser amigo, até a morte recente do cineasta. Como ficara depois amigo e ouvira as ideias de tanta gente como Roberto Farias, Glauber Rocha, Luiz Carlos Barreto, Joaquim Pedro de Andrade e tantos outros. Velloso era o exemplo de um Brasil com o qual sonhamos tanto, onde os conflitos políticos não perturbavam as necessidades específicas de cada atividade. Um Brasil que bem correspondia ao ensinamento de Raymond Aron, cientista político francês de meados do século passado: “Na política, a opção jamais tem a ver com a luta entre o bem e o mal, mas com o preferível e o detestável.”
A última publicação do Fórum Nacional a que tive acesso foi a de um livrinho sobre os grandes amores da Bíblia. Nele, Reis Velloso reproduzia a palavra do apóstolo Pedro, citando o profeta Joel: “Vossos filhos profetizarão, vossos jovens terão visões, e vossos velhos sonharão”. Era essa a sua esperança de construção do país, baseada no que podemos sonhar e fazer a cada momento distinto.
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