- Valor Econômico
Letalidade policial começou a crescer a partir de 2013
Sentados lado a lado durante a entrevista coletiva sobre a operação policial em Paraisópolis, zona sul de São Paulo, que resultou em nove mortos, as autoridades presentes variaram no tom. Quanto mais alto na hierarquia, mais duro o discurso: “Se há relação de fato e efeito, só o inquérito dirá” (cel. Vanderlei Ramos, comandante da Polícia Militar da capital); “Não podemos tirar conclusões açodadas” (cel. Marcelo Sales, comandante da PM no Estado); “Os policiais não atiraram, o fato é lamentável e está sendo apurado pela corregedoria” (general João Camilo de Campos, secretário de Segurança); “A letalidade não foi provocada pela PM e, sim, pelos bandidos” (João Doria, governador).
A moderação dos comandantes reflete a tentativa de seguir um manual de profissionalização das forças policiais. As normas são reiteiradamente descumpridas por tropas a serviço de interesses radicalizados e avessos à mediação civilizatória do Estado. Esses interesses se refletem na proliferação de grupos de extermínio e são a semente de ‘bancadas da bala’ crescentes e de governantes linha dura.
A gradação do discurso das autoridades não se limita à hierarquia. Reflete a relação entre a violência e a ascensão da extrema direita no Brasil. Foi a radicalização da violência que precedeu a da política e não o contrário. Sobre as bases de dados das secretarias de segurança pública, as pesquisas de Jacqueline Sinhoretto (Ufscar) atestam que a curva crescente da letalidade policial no país coincide com as primeiras grandes manifestações de rua, em 2013. De lá para cá, o número de pessoas mortas pela polícia mais do que dobrou no país. Apropriadas pela direita, aquelas manifestações resultaram no impeachment de Dilma Rousseff, em Doria, nos governadores do PSL - Wilson Witzel (RJ), Comandante Moisés (SC), Coronel Rocha (RO) - e no presidente Jair Bolsonaro.
Os bons comandantes policiais têm tantas dificuldades de lidar com tropas insubordinadas quanto os generais com efetivos fardados e suscetíveis ao discurso do agente provocador que ocupa o Palácio do Planalto. Mas não apenas ao dele. Em 2018, o então governador de São Paulo, Márcio França (PSB), condecorou a policial militar Kátia Sastre, que, a paisana e acompanhada da filha de sete anos, desarmou e matou um assaltante em frente à sua escola. Repreendida pelo coronel Sales, o mesmo que permanece no comando da PM hoje, por ter fugido ao manual, a cabo deixou a polícia para se candidatar a uma vaga na Câmara dos Deputados pelo PL, sendo eleita com 264 mil votos. As bancadas da bala no Congresso e nas Assembleias Legislativas são formadas por réplicas de Kátia Sastre, que se rebelam contra tentativas de profissionalizar as polícias e conter sua ação aos princípios dos manuais.
O sucessor de França chegou ao Palácio dos Bandeirantes na carona do bolsonarismo. “Não façam enfrentamento com a Polícia Militar nem com a Civil. Porque, a partir de 1º de janeiro, ou se rendem ou vão para o chão. Se fizer o enfrentamento com a polícia e atirar, a polícia atira. E atira para matar”, disse Doria, numa entrevista. Eleito, entrou novamente em campanha, pela Presidência. Como a direita, nesta jurisdição eleitoral, já está ocupada pelo titular, o governador operou uma mudança de discurso e passou a fazer um contraponto a Bolsonaro, com críticas à apologia do golpe de 1964 e à indicação do seu filho à embaixada americana.
Na segurança pública, porém, Doria não tem como se afastar muito da linha dura visto que se trata da área mais bem avaliada do governo federal, seja pela insistência do presidente da República em se associar ao tema, seja pela popularidade do seu ministro da Justiça, Sergio Moro. A política de segurança pública do governador paulista não tem metas de controle da violência do Estado. E, de fato, desde sua posse, a queda nos índices de homicídio, roubos e policiais mortos se dá às custas de uma curva acentuada da letalidade policial que só perde para o Rio de Witzel. No primeiro semestre deste ano, a polícia paulista foi responsável por 31% das mortes intencionais registradas no Estado. Quatro anos atrás, esse índice era de 21%.
Doria pôs, na Secretaria de Segurança Pública, o general que esteve duas vezes à frente do Comando Militar do Sudeste. Com isso, buscou estabelecer uma linha direta com os militares e rompeu a tradição estabelecida no Estado de optar pelo Ministério Público. Numa grande parte dos Estados, para evitar o acirramento de tensões entre as polícias militares e civis, os governadores colocam um egresso da Polícia Federal no comando. Ao optar por promotores, sucessivos governadores paulistas comprometeram a independência da corporação (Ministério Público) responsável por denunciar os excessos da ação policial.
Ao optar por agir como sucursal do bolsonarismo no discurso da segurança pública, o governador de São Paulo aumenta seu isolamento no PSDB. Em entrevistas ao Valor, tanto o presidente nacional do partido, o deputado federal Bruno Araújo (PE), quanto o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, em ascensão no tucanato, deixaram claro que o partido vê a necessidade de moderar o discurso como a única saída para não ser atropelado por alternativas como a do apresentador Luciano Huck. A tentativa de se aproximar dos militares também parece não ter conseguido furar a opção preferencial da farda por Moro.
A linha dura na segurança pública coloca Doria em concorrência direta com Witzel pela raia bolsonarista. Além de exibir uma letalidade policial que é o dobro da de São Paulo, o governador do Rio tem armas inexistentes no arsenal paulista. Quando deixaram o comando da segurança pública no Rio, em dezembro de 2018, os militares levaram para o Centro de Informações do Exército todos os arquivos que diziam respeito à atuação de sua tropa e entregaram para o governador eleito as informações relativas às policias estaduais e às milícias por elas controladas. Foi assim que Witzel colocou algumas braçadas à frente de Doria. Sua polícia não apenas é a que mata mais como também é guardiã do mais disputado acervo da República.
Aquele que conta a história de como o descontrole do poder armado deu asas ao maior fenômeno da direita na história nacional.
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