Em entrevista exclusiva, Steven Levitsky comenta possibilidade de fraude em novembro e de Trump não reconhecer resultado das eleições; segundo ele, 'a democracia americana está doente'
Paola De Orte | O Globo
WASHINGTON - Nesta semana, logo após a divulgação de dados que mostravam queda de 33% em termos anuais no segundo trimestre da economia americana, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, publicou um tuíte sugerindo que as eleições fossem adiadas. A possibilidade foi descartada no mesmo dia por aliados do presidente no partido Republicano. Analistas trouxeram diferentes explicações para a declaração: Trump poderia estar tentando distrair o público dos números ruins na economia ou preparando seus apoiadores para uma narrativa a ser emplacada caso perca as eleições.
O professor da Universidade de Harvard Steve Levitsky acredita que a publicação reflete a personalidade do presidente, mas pode também ter por trás uma estratégia de desacreditar o sistema eleitoral como um todo. O coautor do best-seller “Como as Democracias Morrem” acredita que esse tipo de ação faz parte de um padrão mais amplo de comportamento autoritário e que, apesar de o país ter instituições democráticas sólidas, elas estão hoje mais frágeis do que quando o presidente assumiu.
• Qual o objetivo do presidente ao sugerir adiar as eleições?
Trump, ao contrário de outros presidentes, faz coisas sozinho, sem consultar assessores. Pode ter sido uma estratégia ou apenas algo estúpido que ele tuitou. Se foi uma estratégia, não acho que ele esteja tentando adiar as eleições. Está claro na Constituição que só o Congresso pode fazer isso, e ele não tem apoio do Congresso. Ainda que possa utilizar uma manobra autoritária para violar a Constituição, é improvável. O mais provável é que tenha sido apenas algo estúpido que disse. Ou pode ser parte de um esforço maior para desacreditar as eleições. Ele sabe que há chance alta de perder. Não está claro se está disposto a aceitar a derrota. Uma das coisas que tem feito é falar em fraude, que o voto por correio é fraudulento, ainda que ele mesmo tenha votado assim muitas vezes. Tenta minar a legitimidade das eleições, criando uma narrativa que o permita dizer que terão fraude. Assim, quando perder, pode alegar isso. Não tenho certeza de que exista um plano autoritário por trás, não acho que ele tenha o poder de usar isso para continuar no cargo. Pode ser apenas uma coisa pessoal para seu ego, para que possa sair por aí gritando que não perdeu.
• É mais uma questão de personalidade do que uma estratégia?
São ambas as coisas, não são mutualmente excludentes. Ele tem tentado desacreditar as eleições, disse que houve fraude em 2016, que pode não aceitar o resultado. Isso é parte de um esforço para poder dizer que as eleições não são justas. Ao mesmo tempo, pode ter sido só uma reação pessoal. Ele não tem familiaridade com a Constituição, não se importa em seguir as práticas democráticas ou as normas constitucionais.
• Por que o presidente tuitou sobre o adiamento logo após serem divulgados dados ruins sobre a economia?
Não tenho evidências de que a equipe de Trump tenha um plano bem pensado. É ele se lamuriando. Sim, ouvimos notícias devastadoras que não vão ajudá-lo. Ele está tentando vender a ideia de que a economia está se recuperando. Mas as coisas não estão bem, estão piorando. E isso foi uma evidência clara de que as coisas estão terríveis e de que isso vai prejudicar sua reeleição. Quanto mais Donald Trump pensar que ele vai perder a eleição, mais vai jogar bombas no processo eleitoral.
• Por que um presidente teria interesse em desacreditar eleições?
Trump é diferente dos autoritários sobre os quais escrevemos no nosso livro, porque a maior parte deles têm um projeto para se manter no poder. Não há evidência de que ele tenha. Ele tem personalidade autoritária, instinto autoritário, mas não está claro que tenha um plano autoritário. A razão para o tuíte pode ter sido apenas se sentir melhor. Por que alguém tentaria desacreditar eleições? Porque você quer criar dúvidas na cabeça das pessoas. Se boa parte da população acreditar que as eleições foram injustas ou roubadas, ele poderá dizer que nunca perdeu uma eleição e se sentir melhor. Em um cenário mais sinistro, poderia usar isso. É o que autoritários fazem, usam dúvidas sobre eleições para justificar seu comportamento. Não acho que Trump pode ou fará isso. Mas um autoritário que lança dúvidas sobre eleições pode usar isso para justificar sua insistência em novas eleições e se recusar a entregar o poder.
• Quais as chances de o presidente se recusar a aceitar o resultado da eleição?
Altas. Não sei o quão sério será, nem por quanto tempo ele conseguirá se safar. Mas acho que, se Trump perder, há chances altas de que questione se as eleições foram livres e justas.
• Quais as consequências disso?
Há dois cenários. Hoje, com Biden liderando por uma margem grande, a alegação de fraude não será crível. Isso convenceria apoiadores de Trump de que as eleições não são livres e justas, o que é catastrófico em termos de confiança nas instituições democráticas. Mas ele provavelmente não será capaz de se manter no poder para destruir a democracia. A única maneira de fazer isso é se a mídia de direita, a Fox News, o partido Republicano inteiro e talvez quatro ou cinco membros da Suprema Corte estiverem alinhados. Aí teríamos uma grande crise democrática. Isso não vai acontecer do jeito que a coisas estão hoje, porque Biden está na frente por muitos pontos. Mas, se for uma eleição apertada como a de 2014 no Brasil, e se for plausível que tenha havido fraude, então poderíamos entrar em crise.
• O presidente Bolsonaro disse em março que houve fraude nas eleições que ganhou. Por que um presidente alegaria fraude nessa situação?
Eu não conheço Bolsonaro, não entendo como seu cérebro funciona. Às vezes, parece que ele imita Trump como um papagaio, como fez em seu comportamento com relação ao coronavírus e à hidroxicloroquina. Se eu fosse seu assessor, o aconselharia a encontrar outro líder político para copiar. É estranho um presidente acusar de fraude uma eleição que ganhou. Trump fez isso em 2016 porque perdeu o voto popular e odeia isso. Odeia o fato de que mais pessoas votaram em Hillary Clinton do que nele. Então quer que acreditem que imigrantes ilegais votaram e que ele ganhou o voto popular. Essa não pode ser a razão para Bolsonaro, porque ele ganhou o voto popular, e por muito. Talvez possa ser porque Bolsonaro provavelmente enfrentará uma eleição mais difícil em 2022 do que em 2018. O Brasil, como os EUA, tem um processo eleitoral sofisticado. Não há muita evidência de fraude significativa nas eleições brasileiras modernas. Mas, talvez Bolsonaro vá perder uma eleição apertada em 2022. Minar a legitimidade do processo eleitoral pode deixar dúvidas na mente das pessoas sobre se o processo é livre e injusto.
• Há hoje um debate nos EUA sobre restrição ao voto de minorias. Como isso acontece?
Nos últimos dez anos, houve esforço dos Republicanos em partes do país para dificultar o registro e o voto, reduzindo os locais de votação. Eleitores não brancos e imigrantes têm mais dificuldade, e eles são eleitores dos democratas. Os republicanos estão tentando diminuir seu comparecimento às urnas. Isso já acontecia antes de Trump. A ameaça agora é que ainda não controlamos o coronavírus, e a situação pode piorar em novembro. Haverá cidades em que será perigoso sair. Quem trabalha nas eleições presenciais nos EUA são voluntários, pessoas aposentadas. Muitos ficarão em casa. Pode haver caos no dia, locais de votação podem não ter ninguém para trabalhar e acabarem fechando. As pessoas ficarão com medo de votar presencialmente porque as filas podem ficar muito longas, cinco ou seis horas. Elas podem não se sentir seguras de esperar esse tempo. Por causa da pandemia, o voto por correio é essencial. Em muitos estados, isso já acontece, apenas em alguns poucos, oito ou nove, isso ainda é uma questão.
• Há maior chance de fraude nas eleições por correio?
Existe a possibilidade de usar o voto por correio para fraudes. Mas nossas eleições são descentralizadas. Cada localidade possui diferentes sistemas. É impossível orquestrar uma fraude nacional. Poderia haver conspirações para cometer fraudes localmente, como ocorreu com os republicanos na Carolina do Norte em 2018. Mas a probabilidade de fraude em larga escala é baixa. Cinco estados usam apenas votação por correio. A evidência é de que há pouca fraude.
• Quando o presidente sugere o adiamento das eleições, a possibilidade de elas serem adiadas é a única preocupação?
Não, isso faz parte de um padrão mais amplo. Quando você elege uma figura autoritária que não está comprometida com as regras democráticas, você coloca sua democracia em risco. Ficamos vulneráveis a um presidente que está disposto a violar as regras, ainda que possa não ser capaz de fazê-lo. Neste caso, acho que ele não será capaz, mas ele faz pressão contra as regras diariamente. Ele viola a prática democrática, corrói a legitimidade das normas. Às vezes, viola regras. Claramente violou, ao tentar usar o poder da Presidência para convencer governos estrangeiros a encontrar sujeira contra seu rival nas eleições.
Por isso, sofreu impeachment. Se você elege um presidente autoritário, ele agirá como autoritário quando estiver no cargo. É isso que Trump está fazendo. Por sorte, temos uma oposição bastante forte e, assim como o Brasil, instituições democráticas fortes que são difíceis de desmontar, mas Trump as está enfraquecendo. E, todos os dias, é uma nova tentativa, um novo ataque. Isso deixará a legitimidade e a força de nossas instituições em forma muito pior do que em 2016. A democracia pode não morrer, mas está adoecendo cada dia mais.
• Qual o estado da democracia nos EUA hoje?
Fraca e vulnerável. O problema é a polarização extrema entre os dois partidos. Isso torna o sistema presidencial quase totalmente disfuncional, uma das razões pelas quais respondemos tão mal à pandemia. Nossa democracia está doente por termos eleito um líder incompetente e autoritário, mas também por não termos nossas instituições funcionando. Temos provas de que o presidente abusou do poder para conseguir que um governo estrangeiro interviesse em nossas eleições. Esse tipo de abuso é para o que a instituição do impeachment foi criada. Mesmo assim, não conseguimos removê-lo.
Nossas instituições não estão funcionando e isso está cobrando um preço. Os americanos estão cada vez mais céticos sobre a capacidade do nosso sistema democrático de resolver problemas que a nossa sociedade enfrenta, como emprego, saúde, imigração, mudanças climáticas. Meu medo é que, mesmo que sobrevivamos a Trump, o que provavelmente acontecerá, nossa sociedade pode ficar vulnerável a um novo Trump, talvez um Trump mais esperto que prometa resolver nossos problemas por meios autoritários. Nós tivemos sorte, pois Trump é um presidente inepto. Ele não é um líder muito esperto, capaz, disciplinado. Mas nossa sociedade está vulnerável a eleger um demagogo que seja mais esperto do que Trump. Aí sim teremos um problema.
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