segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Irapuã Santana: RIP, Moïse e Durval

O Globo

Um rapaz de apenas 24 anos trabalhou num local por algum tempo. Como era de esperar, desejava receber pelos seus serviços. O valor? R$ 200. Não recebeu e resolveu pedir o que era de direito, no dia 24 de janeiro. Entretanto foi recebido com violência, derrubado por vários homens, virou alvo de socos, pontapés e pauladas até não resistir e morrer.

O jovem era congolês e tinha nome Moïse Mugenyi Kabagambe.

Na semana seguinte, no dia 2 de fevereiro, um homem voltava do trabalho para casa, quando, ao tentar abrir o portão de sua garagem manualmente —o que poderia acontecer com qualquer um —, foi vítima de três disparos feitos pelo vizinho, que alegou tê-lo confundido com um ladrão. Era brasileiro e também tinha nome —Durval Teófilo Filho.

Esses dois fatos extremamente lamentáveis, que devem ser considerados crimes bárbaros, guardam uma característica em comum: a cor da pele das vítimas.

Quando o país ainda estava chocado com tanta crueldade em relação a Moïse, mais uma tragédia ocorreu, dessa vez com Durval.

A desvalorização da vida da pessoa negra faz com que seja “comum” qualquer indivíduo se sentir à vontade para agredi-la fisicamente.

A desumanização da época da escravidão transformou-se no não reconhecimento da aplicação dos direitos fundamentais para a população negra nos dias de hoje. Os episódios relatados demonstram que nossa vida vale menos que R$ 200 e que nem sequer temos o direito de ir e vir em nossa sociedade, tornando uma ação de sair para trabalhar uma atividade que põe em risco nossas vidas.

Para quem não acredita na incidência do racismo nos dois casos, convido a responder se é comum ter notícias de que pessoas brancas são linchadas ou confundidas com bandidos.

Precisamos enxergar ainda a grande probabilidade de as mortes não gerarem nenhuma consequência negativa para os executores, diante da histórica ausência de resposta efetiva de nossas autoridades competentes.

E por que é comum que esses fatores influenciem e convirjam para a população negra brasileira?

Foram quase 350 anos de um regime de opressão e da negação do reconhecimento de caráter humano. É só lembrarmos da figura do pelourinho, conhecido como a coluna de pedra ou de madeira, colocada em lugar central e público, onde eram exibidos e castigados os negros. A História do Brasil foi construída sob essas condições.

Por isso, entendo que é mais adequado adotar a ideia da existência de um “racismo naturalizado”, porque explica melhor o tipo de comportamento repetido por pessoas de todas as etnias, tendo em vista que há quem defenda a inexistência de racismo quando negros estão envolvidos no evento, como se deu no assassinato do Moïse.

Para ilustrar a proposta aqui exposta, cito Preto Zezé, um grande líder antirracista, quando explica: “É a eficiência do racismo produzindo um auto-ódio que nos mata. O fato de um PM preto ser violento ou de um preto chamar o outro de macaco não muda em nada, apenas revela o pior do racismo: fazer-nos ter ódio de nós mesmos”.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Apesar da morte do Moise ser mais violenta,a do Durval expressa melhor ainda o racismo naturalizado em nossa sociedade.