Folha de S. Paulo
O sigilo, a desinformação e o apagão de
dados neutralizam controle e facilitam crime
Todo governo
corrupto pede ignorância, produz ignorância e depende da ignorância.
Não há maior aliado da corrupção do que a ignorância. Não só a cultural e
voluntária, efeito de falta de oportunidade educacional e do desinteresse pelo
mundo e pelo outro. Mas também da institucionalmente forjada.
A produção institucional da ignorância é
política "pública" no governo Bolsonaro. Não é qualquer
desvio localizado num ou noutro ministério, de um ou outro agente. Ela se
fez o mais transversal programa de governo em vigor. Bolsonaro precisa que
desconheçamos o país tanto quanto possível para que a corrupção seja insondável
e infalível.
A prática oficiosa combina três ações: fechar informação por meio de sigilo —o estado de sigilo; destruir ou deixar de construir informação— o apagão de dados; fabricar desinformação e catapultá-la por canais fora do escrutínio público para perturbar o juízo e os afetos. Três formas de supressão da esfera pública e manutenção da ignorância. Essa vasta "arcana imperii" bolsonarista pavimenta a corrupção.
O tripé tornou-se abissal no governo
Bolsonaro. Aqui um resumo.
Razões jurídicas para o sigilo são razões
extraordinárias e sujeitas a controle. Devem ser imprescindíveis à
"segurança da sociedade e do Estado", segundo a Constituição.
Bolsonaro as tornou ordinárias e isentas de fiscalização. Banalizou a exceção
aqui também.
Sigilos centenários foram impostos para: acesso
ao Palácio do Planalto de filhos do presidente, lobistas de armas e
advogado de Bolsonaro; carteira
de vacinação do presidente; encontros de Bolsonaro com pastores lobistas do
MEC; absolvição de Pazuello. Alegou-se "informação pessoal". "Em
cem anos saberá", ironizou Bolsonaro quando perguntado.
O governo também tomou iniciativas para
restringir amplitude da Lei de Acesso à Informação e recusou publicidade a
documentos sobre compra das vacinas Covaxin e Pfizer; encontro eventual do
ex-ministro Sergio Moro com lobistas das armas; estudos sobre cloroquina;
estudo da Fiocruz sobre uso de drogas; dados de desemprego; autuações e multas
sobre crimes ambientais; documentos sobre as reformas administrativa e da
previdência.
Gastos
recordes com cartão corporativo presidencial também foram postos em
sigilo. Para viagens governamentais, R$ 1 a cada R$ 4 em diárias e passagens
ficaram em sigilo. Em 2021, o gasto representou R$ 170 milhões. E até matrícula
da filha do presidente em colégio militar, sem ter feito prova de admissão a
que todos se submetem, virou sigiloso.
Durante a pandemia, a batalha governamental
contra a informação foi constante para dificultar a apuração do número de
mortes e omissões da política sanitária. Um
consórcio de imprensa foi montado para preencher o apagão governamental
deliberado.
Além de bloquear informações essenciais à
investigação de corrupção e à avaliação do desempenho governamental, o governo
também instiga desconfiança, desfinancia e assedia funcionários de instituições
que produzem informação e conhecimento. O
adiamento do Censo, pelo IBGE, o ataque aos dados de desmatamento do INPE,
as remoções de dados do Censo Escolar e do Enem pelo Inep são outros exemplos
manifestos.
Nessa "escuridão estatística",
como organizações internacionais que monitoram transparência e corrupção já
diagnosticaram sobre o governo Bolsonaro, um governo vai se liberando para a
delinquência e vivendo à margem do estado de direito.
Impedir acesso e destruir informações, e
desmontar a infraestrutura de produção de dados é o paraíso do governo
corrupto. A corrupção na ditadura militar, por exemplo, foi ocultada por
estratégias desse tipo.
Um sujeito ignorante é manipulável e menos
livre. Um suicida involuntário que toma cloroquina e recusa vacina. Está sempre
às ordens. Ainda mais quando se crê inteligente porque bacharel. Dispensa ser
governado democraticamente. Isso exigiria opinião informada e alguma capacidade
para o autogoverno.
Quem aprendeu que, para ser contra a
corrupção, deve abraçar a morte (física e democrática) com Bolsonaro, sugiro se
manter ignorante sobre o orçamento secreto e continuar a vociferar contra o
mensalão e o petrolão como se não houvesse amanhã. Porque talvez não haja
mesmo. E fuja dos próximos capítulos.
*Professor de direito constitucional da
USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa,
Ciência e Liberdade - SBPC
2 comentários:
Que coincidência, acabei de fazer um comentário à fala de Werneck Vianna e mencionei o expediente bolsonarista do estado de sigilo. Gostaria de perguntar ao professor Conrado Mendes se tal expediente foi usado para ocultar a farra dos marechais.
Conrado Mendes é outro craque da imprensa democrática.
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