O Estado de S. Paulo.
Bolsonaro deu a entender que o cristianismo negava o humano, abraçava a irracionalidade, desprezava a ciência, excluía o drama da vida
Um dos grandes males do bolsonarismo é o
uso da religião cristã para fins políticoeleitorais. Essa instrumentalização da
fé afeta não apenas a laicidade do Estado e o exercício dos direitos políticos,
mas a própria compreensão da religião. Muito se fala da importância de resgatar
o caráter laico do Estado e de reconstruir a racionalidade pública na
administração federal. De fato, trata-se de dois dos grandes desafios do País
neste momento. Mas, depois de quatro anos de uma política misturada com
religião (em especial, com a fé cristã), é preciso renovar, no cenário público,
a própria compreensão da religião, também como caminho para distensionar o
ambiente social.
Com suas palavras e ações ao longo do mandato, Jair Bolsonaro conseguiu dar à religião cristã o mais desfavorável enquadramento possível, reativando no imaginário coletivo os piores estereótipos: antidemocrática, violenta, irracional, hipócrita, desumana, machista, retrógrada, opressora de outras expressões religiosas. É de justiça prover agora um novo olhar sobre o tema. Aqui, recorro a um texto do papa Bento XVI publicado no Natal de 2005, a encíclica Deus caritas est.
“Num mundo em que ao nome de Deus se
associa, às vezes, a vingança ou mesmo o dever do ódio e da violência, esta
mensagem (Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele)é
de grande atualidade e de significado muito concreto”, disse Bento XVI. Esse
trecho, que parece ter sido escrito especialmente para a situação brasileira
atual, alerta para o risco de incompreensões a respeito da religião. Um
fenômeno essencialmente de amor pode, às vezes, ser visto como autorização para
impor-se sobre os demais. No entanto, por sua própria essência, a religião
cristã não impõe nada. Basta ver o que os cristãos celebrarão no dia de Natal:
o nascimento de uma criança. Sem nem sequer saber falar, no presépio, o Menino
Jesus, perfeito Deus e perfeito homem, ensina e já transforma o mundo apenas
pelo exemplo.
Na passagem mais famosa da encíclica, Bento
XVI expôs sua compreensão da religião cristã. “Nós cremos no amor de Deus:
desse modo o cristão pode exprimir a opção fundamental da sua vida. No início
da vida cristã, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro
com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta
forma, o rumo decisivo”, disse. A religião cristã não é um sistema de ideias,
uma filosofia de vida, um código moral. Certamente, ela influencia tudo isso,
mas é anterior a isso: é um encontro amoroso.
Sob essa perspectiva, não se sustenta a
ideia, presente em alguns círculos e muito usada para fins políticos, de que a
propagação da fé cristã exigiria empreender uma guerra contra os que têm
concepções diferentes de vida. É natural que haja, em toda sociedade livre e
plural, uma saudável (e pacífica) disputa de enquadramentos e de sentidos sobre
as várias realidades sociais. Mas a religião cristã não é embate político, não
é perseguição de adversários, não é ridicularização do outro: é encontro.
Aqueles que tentam gerar engajamento
político por meio da religião ignoram um dos pontos centrais do cristianismo.
“Pertence à estrutura fundamental do cristianismo a distinção entre o que é de
César e o que é de Deus, isto é, a distinção entre Estado e Igreja ou, como diz
o Concílio Vaticano II, a autonomia das realidades temporais. O Estado não pode
impor a religião, mas deve garantir a liberdade da mesma e a paz entre os
aderentes das diversas religiões”, disse Bento XVI. São palavras fortes. A
separação entre Igreja e Estado não é um aspecto circunstancial da religião
cristã: pertence à sua estrutura fundamental.
Nessa compreensão renovada do fenômeno
religioso, um passo é desvelar a profunda relação entre democracia e
cristianismo, com sua defesa da dignidade humana. A vivência cristã tem sempre
uma dimensão de descoberta da verdade, que suscita, entre outros pontos,
convicções firmes sobre a vida e o mundo. Mas isso nada tem de antidemocrático.
Aderir a uma verdade, seja ela religiosa, ética, filosófica ou científica, não
é, por si só, nenhuma imposição ou prevalência sobre os demais.
Esta talvez seja a tarefa mais importante:
redescobrir a radical relação entre religião e a dimensão humana da vida. Ao
longo do mandato, especialmente na pandemia, Jair Bolsonaro deu a entender que
o cristianismo negava o humano, abraçava a irracionalidade, desprezava a
ciência, excluía o drama da vida. Trata-se de uma imagem completamente
distorcida da religião. A fé em Deus nunca foi obstáculo para olhar a realidade
terrena. Apenas para ficar no campo da saúde, muita ciência médica e muito
acolhimento de doentes foram feitos, ao longo de séculos, motivados
precisamente pela convicção religiosa de que a vida nesta terra importa – e
muito: “Aquele que não ama seu irmão, a quem vê, como pode amar a Deus, a quem
não vê?” (1 João 4,20).
A necessária reconstrução do espaço público
passa por um novo olhar sobre a religião. Basta de tanta cegueira e barbárie. É
Natal.
5 comentários:
Bolsonarismo é barbárie! Jair Bolsonaro fala em religião mas não a pratica realmente, não segue os princípios religiosos e nem os respeita. Apenas negocia apoios políticos com os pastores safados e corruptos. E segue seus instintos de miliciano criminoso!
"No entanto, por sua própria essência, a religião cristã não impõe nada."
Toda religião monoteísta impõe seu deus. Qd se diz q "ninguém vai ao pai senão por mim" o caminho está imposto e exclui qq outro meio, ié, qq outra religião⁴.
O catolicismo é tão excludente q existem vertentes católicas, ou seja, q creem em Jesus, q não são consideras aptas a proporcionar salvação.
A própria data de Natal, 25/12, foi uma imposição. Ninguém sabe se e quando Jesus nasceu.
Pode até ser...
Mas BENTO XVI?
Alemão, o mais reacionarista e radical papa, abdicatum est?
Ainda se fosse o JOÃO XXIII, ele sim, que foi um grande papa...
Legal o texto,Dai a César o que é de César.
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