sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais /Opiniões

Jamais haverá ninguém que se compare a Pelé

O Globo

Não apenas pelas estatísticas que fizeram dele Rei do Futebol, mas pelo exemplo que deu ao Brasil

Não houve, não há, nem haverá jamais ninguém que se lhe compare. Nas estatísticas, óbvio, mas também — e sobretudo — no exemplo. Foi Pelé — com a marca insuperável de 1.282 gols em 1.364 jogos (479 antes dos 21 anos), três Copas do Mundo antes dos 30 (a primeira aos 17), bicampeonato mundial e dez títulos pelo Santos, além da carreira que lhe rendeu o título de “atleta do século” —, foi Pelé quem mostrou ao brasileiro ser possível livrar-se do rodriguiano “complexo de vira-lata”.

Foi rei no esporte mais popular do planeta, projetando o Brasil como potência. O menino negro, engraxate que jogava com bola de meia em Três Corações, não suportou ver o pai chorar depois da derrota do Brasil na final da Copa de 1950. Prometeu aos 9 anos que traria o caneco— e cumpriu. Quem o viu jogar sabe quão ocioso é compará-lo a outros que tentaram reivindicar (ou usurpar) sua coroa. Não apenas porque suas estatísticas permanecem imbatíveis ou por ter transformado o futebol em arte, com lances desconcertantes, imitados e repetidos à exaustão. Não apenas pela capacidade de enxergar o jogo em três (até quatro...) dimensões, de saber quando chutar a gol e quando driblar, quando fazer uma finta e quando dar um chapéu na defesa e no goleiro — ou apenas quando deixar a bola passar para que um Jairzinho ou Carlos Alberto desferisse a bomba fatídica nas redes. Não apenas por ter dado origem à expressão “gol de placa”, por ter gerado a mística em torno da camisa 10 ou por ter virado substantivo, sinônimo de “o melhor” em qualquer área. Mas sobretudo porque não haveria Maradona, Cruijff, Messi, Neymar ou Mbappé não tivesse havido antes um Pelé.

Seu jogo projetou-o ao mundo quando as imagens da televisão tornavam o futebol global. Conquistou o planeta num momento em que o esporte começava a se transformar no negócio que hoje atrai bilhões e movimenta trilhões. Foi a primeira estrela futebolística reconhecida no mundo todo — e abriu caminho aos que vieram depois. Mesmo idoso, era seguido por fãs ávidos por uma foto ou autógrafo. Desde 1958, Pelé nunca saiu de moda.

Ao referir-se a si mesmo na terceira pessoa, hábito visto por muitos como cabotino, também demonstrava uma sabedoria incomum entre esportistas que alcançam riqueza e sucesso antes da maturidade. Uma coisa era a majestade do Rei Pelé, a figura pública. Outra o cidadão Edson Arantes do Nascimento, um ser humano comum, capaz de se envolver em trapalhadas nos negócios e nos amores, de se negar a reconhecer a filha fora do casamento e de nem sempre corresponder à expectativa de perfeição projetada sobre os heróis. Errou, mas quase sempre teve a dignidade de reconhecer suas falhas.

Ainda que tenha aceitado ocupar o Ministério dos Esportes no governo Fernando Henrique, teve também a sabedoria de se manter distante da política partidária. Num país com uma história horrenda de escravidão, combateu o racismo não com declarações militantes, mas pelo exemplo. Era um defensor contumaz de melhorias na educação. Dedicou às crianças o gol de 1969 considerado seu milésimo. Valorizava a perseverança, dizia que era preciso empenho no treinamento para não desperdiçar talento. Para a glória dos brasileiros e dos amantes do futebol, ele não desperdiçou nem um milímetro do seu. Morreu o Edson. Pelé, todos sabemos, é eterno.

Revogar liquidação da estatal de chips Ceitec seria erro injustificável

O Globo

Empresa custou R$ 800 milhões sem trazer retorno. Apesar disso, futura ministra quer mantê-la

Como engenheira, a futura ministra da Ciência e Tecnologia, Luciana Santos, deveria saber que é uma insanidade fazer sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes. A valerem suas declarações recentes, ela pretende revogar a liquidação do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), estatal criada em 2008 com a missão de produzir semicondutores no Brasil. Se for adiante, será um erro injustificável.

Por mais de uma década, o Ceitec consumiu R$ 800 milhões em aportes públicos sem jamais ter conquistado relevância nem mesmo no mercado interno. Trabalha com tecnologias ultrapassadas, num setor hoje dominado por Taiwan e Coreia do Sul, onde até Estados Unidos e países europeus têm dificuldades para penetrar. Não há nenhuma evidência de que continuar a despejar milhões no Ceitec resultará em algo além de desperdício.

Mesmo reconhecendo que o Estado pode, em certos casos, sanar imperfeições do mercado, é difícil argumentar em favor do Ceitec. Países com recursos financeiros e humanos muito superiores aos brasileiros estão numa corrida insana para fabricar chips de todo tipo. Depois da escassez provocada pela pandemia, que elevou a demanda por computadores e smartphones e, ao mesmo tempo, sobrecarregou as cadeias globais de suprimento, a oferta se recuperou. Olhando para a frente, a tendência é o domínio de países que já comandam a produção. O chip desenvolvido no Ceitec é trivial perto do que fabricam os centros avançados e do que a indústria eletrônica exige. É um despropósito achar que basta gastar mais para conquistar um pedaço desse mercado. O que existe é apenas um fetiche do nacional-desenvolvimentismo.

O Brasil deveria se preocupar em dominar tecnologias que lhe darão chance de competir, não despender energia numa corrida que perdeu há mais de 30 anos. O discurso nacional-desenvolvimentista, que produz aberrações como a reserva de mercado de informática ou o Ceitec, fornece uma explicação simplória para não sermos um país desenvolvido: desde a Colônia, exportamos produtos primários e importamos manufaturados. A receita para mudar isso, segue o argumento, é o Estado intervir para fomentar a produção em setores que não dominamos. A realidade, claro, é mais complexa. Nenhum país pode tudo, por maior que seja. A melhor forma de gerar riqueza para desenvolver-se é apostar nos setores em que há vantagens comparativas, mesmo que isso signifique importar todo o resto.

Nossas mazelas têm outras razões: educação deficiente, impostos bizantinos, serviço público caro e sofrível, empresas locais improdutivas, superprotegidas da competição. Não faltaram intervenções estatais na nossa História, das plataformas de petróleo à indústria automotiva. Os raros casos de sucesso — como Embrapa e Embraer — resultam de investimentos estratégicos em conhecimento no momento adequado e do respeito aos sinais do mercado. A nova ministra faria bem em estudá-los a fundo, em vez de insistir no fetiche da fábrica de chips.

Ele

Folha de S. Paulo

Pelé foi a pessoa certa na hora certa; seu nome confundiu-se com o do país

Resultaria difícil para qualquer ser humano dimensionar com precisão o que significava ser Pelé. Trata-se de nome e rosto reconhecidos de imediato ao longo de seis décadas em qualquer lugar do mundo, algo virtualmente impossível para outras pessoas, incluídos aí monarcas, líderes políticos e religiosos, artistas e outros esportistas.

Superexposto muito antes da era da superexposição, Edson Arantes do Nascimento, mineiro de Três Corações morto nesta quinta-feira (29) aos 82 anos, praticamente transmutou-se numa entidade à parte, como ele próprio gostava de dizer, em tom de blague.

A importância dessa entidade atravessou em muito as quatro linhas do campo de futebol.

Do ponto de vista de um país com influência fortemente limitada no plano internacional, é preciso apontar de pronto: Pelé foi o brasileiro que maior notoriedade e importância mundial alcançou em qualquer época. Seu nome confundiu-se com o do Brasil, por vezes impulsionando-o em reconhecimento, quando não o superando.

Para o futebol, criação humana de alcance singular, Pelé foi a pessoa certa na hora certa. Seu período de maior fama coincidiu com um momento de expansão acelerada do esporte por fronteiras de todos os continentes, estimulada pela evolução tecnológica das transmissões pela televisão e pela ação da Fifa, entidade que controla a modalidade.

Afável, ambicioso, inteligente, cidadão do mundo, ele desempenhou com gosto o papel de estrela. Abriu o caminho do então mais importante mercado consumidor do planeta, o norte-americano, para o futebol.

Tornou-se rosto frequente em muitas formas de mídia: nas transmissões esportivas, no jornalismo, na publicidade, no cinema, na música, nos quadrinhos, nas artes plásticas.

Adentrou o terreno da política e ocupou o posto de ministro extraordinário do Esporte de 1995 a 1998, no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Data desse período a chamada Lei Pelé, que, entre outras coisas, atualizou no Brasil a relação trabalhista entre clubes e jogadores, pondo fim ao instrumento conhecido como passe.

Na política da bola, Pelé jogou o jogo que lhe interessava, recebendo por isso merecidas críticas. Aliou-se a um outro brasileiro, João Havelange, que engatava um projeto de poder sobre o futebol mundial que durou 24 anos e serviu a extensa e documentada corrupção. Em troca, o atleta mítico recebeu guarida na propagação de sua imagem mundo afora.

Pelé fez negócios. Envolveu-se num episódio nebuloso com o Unicef, que teve como resultado um montante de US$ 700 mil desviados para uma conta privada, dinheiro que ele prometeu devolver, depois voltou atrás. Ensaiou lançar uma liga independente de futebol no Brasil, frustrada como tantas outras tentativas. Negociou direitos de TV com cartolas.

Foi criticado por desempenhar papel acanhado contra o racismo. Embora legítima, a escolha não ficou imune ao lamento, sobretudo sendo ele oriundo do país que recebeu a maior população de escravos negros nas Américas.

Outro flanco frequente de questionamentos teve origem em opções da vida pessoal, em que Edson viveu amores públicos e dramas conhecidos com filhos.

Nada do acima apaga um fato: esportivamente, Pelé não foi, jamais, uma criação de marketing. Seus feitos falam por si. Único jogador a ganhar três Copas do Mundo e também o mais jovem campeão, com 17 anos em 1958.

Autor de 1.283 gols em 1.365 jogos —e de outros não gols que só ele poderia transformar em históricos. Executor dos fundamentos à perfeição. Criador de jogadas. O esporte simplesmente nunca mais foi o mesmo depois dele.

As frases sobre Pelé são inúmeras, famosas, eloquentes. Três delas, de personalidades de países e profissões diferentes, ajudam a definir uma pessoa tão incomum.

Encarregado de marcá-lo na final de 1970, o italiano Tarcisio Burgnich diria após o jogo: "Pensei: Ele é feito de carne e osso como eu. Eu me enganei". O poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade sentenciou: "O difícil, o extraordinário não é fazer mil gols, como Pelé. É fazer um gol como Pelé".

Em uma de suas várias visitas à Casa Branca, o tricampeão mundial de futebol ouviu do morador: "Meu nome é Ronald Reagan, sou o presidente dos Estados Unidos da América. Mas você não precisa se apresentar, porque todo mundo sabe quem é Pelé".

A frase de Reagan deriva de um relato do próprio Pelé. Quem a achar exagerada pode conferir, em vídeo, quando os dois saem para o jardim da Casa Branca, que o americano reformula o chiste para uma plateia de crianças. Mas pouco importaria se fosse invenção.

As lendas sobre o brasileiro são tantas e de tal monta que se misturam a uma realidade também inacreditável, de modo que tanto faz. Afinal, é incontestável que todo mundo sabe quem foi Pelé.

Os dois corpos do Rei

O Estado de S. Paulo.

Como os deuses do Olimpo, Pelé não envelhece nem falece. Estará para sempre vivo, marcado na memória mundial como o brasileiro que usou o futebol para fazer a humanidade sonhar

Edson Arantes do Nascimento, soubemos há pouco, era mortal. Mas Pelé não. Como os deuses do Olimpo, Pelé não envelhece, não enruga, não falece. Até o fim dos tempos, Pelé estará vivo, marcado na memória mundial como o homem – o brasileiro – que usou o futebol para fazer a humanidade sonhar.

Desde os 17 anos, idade em que ainda não se distingue muito bem a realidade das fantasias juvenis, esse gênio generoso estimulou as ilusões de bilhões de pessoas (súditos seria a palavra mais adequada) com sua arte. Os idiotas da objetividade, diria Nelson Rodrigues, se apegam aos mil e tantos gols de Pelé, marca até hoje intocada, como o principal argumento para qualificá-lo como o maior jogador de futebol de todos os tempos. Isso é o mesmo que dizer que se um norueguês qualquer, com bom faro de gol, superar esse recorde, então haverá um novo “rei do futebol”. Ora, Pelé poderia ter feito 3 mil gols, mas definitivamente não seria isso o que o distinguiria, e sim sua capacidade inesgotável de emocionar torcedores de todos os times e seleções, em todas as latitudes, mesmo depois de sua aposentadoria. O gol, que ele buscava com incrível obsessão, era apenas a modesta recompensa para esse virtuose inigualável.

Se o futebol, o maior esporte planetário, transcende nacionalidades e culturas, Pelé era sua língua franca. Com domínio pleno de todos os fundamentos do jogo, estava livre para ir muito além dele. Ali não estava um jogador, no sentido estrito da palavra, mas o senhor do jogo. Nelson Rodrigues certamente não foi o primeiro a perceber sua majestade, mas foi o primeiro a coroá-lo formalmente: Pelé, menino, foi chamado de “rei do futebol” numa crônica de 1958 em que Nelson escreveu que o craque “leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: a de se sentir rei, da cabeça aos pés”. E continua, em seu estilo: “Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento”.

Pelé, de fato, parecia saber que não era deste mundo, razão pela qual costumava se referir a si mesmo em terceira pessoa, como se estivesse falando de uma entidade mística que sobreviveria ao atleta que a representava nos gramados. Tal como os reis medievais descritos pelo historiador alemão Ernst Kantorowicz 1957), que tinham um corpo físico e mortal e um corpo imutável no tempo, Pelé dissociou-se de Édson Arantes do Nascimento e se tornou, desde que assombrou o mundo pela primeira vez, na Copa de 1958, um receptáculo de utopias coletivas, um ponto de comunhão de valores universais num mundo marcado pelo conflito e a mesquinhez. Poucas personalidades na história atingiram esse grau de unanimidade – algo que já seria extraordinário em si mesmo, mas que é ainda mais notável quando se recorda que sua coroação se deu numa época em que a comunicação global ainda engatinhava e em que não se produziam ídolos instantâneos como nestes tempos de internet e redes sociais.

E isso tudo sendo brasileiro. Não é algo trivial para este país, que oscila tanto entre o otimismo eufórico e o pessimismo atávico em relação às suas capacidades. Pelé encarnou, como nenhum outro, um Brasil que é naturalmente potente. Os idiotas da objetividade (eles, mais uma vez) costumam menosprezar essa potência por se tratar apenas de futebol. Mas não é apenas futebol. É identidade nacional. Quando um brasileiro é reverenciado como uma divindade em todo o mundo, sendo reconhecido como o maior de todos os tempos numa atividade que mobiliza tantas paixões, é o Brasil que se projeta e se distingue. Se o País não aproveita esse (poder brando) como deveria, é outra história.

Nos próximos dias, o mundo certamente vai parar para se despedir do corpo físico e mortal de Pelé. Espera-se que as autoridades brasileiras compreendam a dimensão excepcional desse acontecimento e dediquem às exéquias reais seus melhores esforços. Não cabem, neste momento, nenhuma divergência ideológica e nenhuma objeção de caráter político: o funeral de Pelé deve simbolizar a união e o orgulho dos brasileiros, como ele simbolizou o melhor deste país quando encantou o mundo com a sua arte.l

Remendos constitucionais

O Estado de S. Paulo.

Emendas à Constituição se tornaram banais. Que os próximos congressistas sejam mais comedidos e façam da Lei Maior um marco de estabilidade, não a ermida de interesses ocasionais

A Constituição de 1988 já nasceu inchada, com 245 artigos, além dos outros 70 artigos constantes do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. O fim da ditadura militar, a premente necessidade de restabelecer direitos e garantias fundamentais tirados à força dos cidadãos e uma nova concepção do Estado explicam a prolificidade dos constituintes originários. A mudança da ordem política levou a sociedade a optar, por meio de seus representantes, por dar guarida constitucional a muitas questões que, em tempos normais, deveriam ser reguladas por leis ordinárias.

Ocorre que mais de três décadas se passaram desde a promulgação da Constituição. Todo esse tempo de amadurecimento da Lei Maior, além da própria compreensão dos cidadãos sobre seus termos, deveria ter servido para suscitar revisões que levassem a uma reacomodação normativa, no sentido de restringir ao máximo o que, de fato, haveria de estar consagrado na Constituição e o que poderia ser rebaixado à legislação infraconstitucional. O que se observou nesses últimos 34 anos, porém, foi o movimento contrário: a hipertrofia da Constituição.

O Congresso já promulgou nada menos que 140 emendas constitucionais (a rigor, 128, se excluídas as emendas de revisão e os tratados internacionais com status de emenda). Desse total, 29 (23%) foram promulgadas na atual legislatura. Particularmente, 2022 foi um ano recorde: os parlamentares aprovaram 14 emendas constitucionais, mais de uma por mês, o maior número para um único ano desde 1988. O recorde anterior, de 2014, era de 8 emendas constitucionais aprovadas, pouco mais que a metade.

Há muitas explicações para essa sucessão de remendos ao texto constitucional, cujas consequências, em vários casos, são péssimas para o País. No que concerne à banalização da Constituição pela atual legislatura, sobretudo este ano, o movimento pode ser explicado pelo empoderamento do Poder Legislativo em detrimento do Poder Executivo durante o governo Bolsonaro. Nos últimos três anos, a harmonia entre os Poderes se converteu numa espécie de rendição do Palácio do Planalto à uma relação de captura pelo Congresso.

A debilidade moral, política e administrativa do presidente da República o tornou refém de parlamentares que, para não fustigá-lo diante da miríade de crimes de responsabilidade que Bolsonaro cometeu, exigiram – e obtiveram – recursos políticos e financeiros inauditos na história republicana. O Congresso se tornou o grande formulador da agenda política nacional, nem sempre tendo como norte o interesse público. Nesse afã, a promulgação de emendas constitucionais aos borbotões foi uma forma de burla do sistema de freios e contrapesos, na medida em que os parlamentares passaram a se esquivar, a um só tempo, dos vetos do Poder Executivo e do controle de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal (STF) pela via da hiperconstitucionalização.

Uma Constituição obesa traz muitos problemas para a saúde institucional do País. A consequência mais óbvia dessa hiperconstitucionalização é o aumento do protagonismo do STF, responsável último pela guarda do texto constitucional. O STF tem sido muito criticado por agir na direção de uma suposta “judicialização da política”. Mas, ora, como a Corte haveria de permanecer inerte diante do fato de que os mais variados – e miúdos – assuntos da vida nacional têm chegado à Constituição com tanta frequência?

Outro problema é o engessamento do Estado. A própria Constituição previu os mecanismos para sua alteração. Contudo, por meio da exigência de um quórum qualificado em dois turnos de votação em ambas as Casas Legislativas, os constituintes originários evidenciaram que essas alterações não deveriam ser banais. Logo, se é difícil aprovar uma emenda à Constituição – sobretudo quando versa sobre direitos, e não deveres –, naturalmente, também é extremamente difícil retirar do texto constitucional os seus excessos.

Uma nova legislatura sempre traz uma nesga de esperança por mudanças positivas. Que os próximos congressistas sejam mais comedidos ao mexer na Constituição e contribuam, assim, para que a Lei Maior seja um marco de estabilidade para o País, não a ermida de interesses ocasionais.

Lei premia a irresponsabilidade

O Estado de S. Paulo.

Aprovado pela Alesp, veto à exigência de vacinação contra covid é retrocesso civilizatório e jurídico

O governo do Estado de São Paulo foi exemplar no enfrentamento da pandemia, em especial por seu pioneirismo e protagonismo na obtenção da vacina contra a covid. Frente ao desleixo e às confusões do governo Bolsonaro, a administração paulista foi referência segura, em tempos especialmente conturbados, de compromisso com a saúde pública. No entanto, a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) parece determinada a manchar o histórico de responsabilidade do Estado de São Paulo. Recentemente, os deputados estaduais aprovaram o Projeto de Lei (PL) 668/2021 que proíbe a exigência de cartão de vacinação contra a covid para acesso a locais públicos e privados no Estado, incluindo escolas do ensino fundamental e médio, cursos técnicos e faculdades.

De autoria da deputada estadual Janaina Paschoal (PRTB-SP), o PL 668/2021 reflete uma compreensão rigorosamente equivocada sobre o Estado e a própria vida em sociedade, como se o cuidado com a saúde pública não pudesse gerar restrições a quem não queira se vacinar contra a covid. O texto aprovado pela Alesp, que merece veto integral do governador, não tem nada de defesa da liberdade individual. O que se pretende é algo inteiramente diferente. O PL 668/2021 almeja uma liberdade sem consequências, o que é uma aberração. Não nega apenas a ciência e a legislação federal (em especial, a Lei 13.979/2020), mas a própria dimensão social da vida humana.

O sofisma pretensamente liberal - em nome da liberdade, o poder público não poderia fixar restrições a quem não quer se vacinar contra a covid - produz a antítese do liberalismo: toda a coletividade torna-se refém de quem optou por um comportamento de risco. É sintomático da confusão dos tempos atuais que a ignorância e a indiferença com o coletivo sejam apresentadas como virtudes cívicas, merecendo lei estadual específica para seu pleno exercício.

Mais do que expressar uma efetiva preocupação coletiva – afinal, os paulistas foram exemplares na vacinação contra a covid –, o PL 668/2021 parece orientado a enfrentar uma portaria da reitoria da Universidade de São Paulo (USP), que exige comprovação do esquema vacinal completo contra a covid para o acesso de professores e alunos aos campi da universidade. Trata-se, como já dissemos neste espaço (USP acerta ao cobrar vacina, 5/10/22), de uma medida correta, que visa a enviar uma mensagem claríssima à comunidade acadêmica e, por extensão, ao resto da sociedade: a saúde de todos será realmente protegida se todos se vacinarem. O mínimo que se pode esperar de quem pretende participar da vida acadêmica é respeito à ciência e cuidado com a comunidade.

O Estado de São Paulo tem muitos desafios, que exigem atenção da Alesp. Brigar com a ciência e com a civilidade não é um deles. Não faz nenhum sentido, especialmente agora – quando são evidentes os resultados positivos da responsabilidade paulista no enfrentamento da pandemia –, que a atual legislatura estadual gaste seu tempo com leis que são puro retrocesso civilizatório, jurídico e sanitário. A liberdade merece melhor compreensão.

Mudanças incentivarão decisões colegiadas no STF

Valor Econômico

Protelar indefinidamente processos é expediente danoso para a Justiça

Com as mudanças anunciadas nesta semana em seu regimento interno, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que há falhas importantes em seu funcionamento e que não é imune a críticas - elas foram especialmente abundantes, e por motivos errados, durante o governo de Jair Bolsonaro. As alterações poderão reduzir os atritos decorrentes de atuação personalistas de seus ministros e darão mais racionalidade na decisão de medidas que protejam tempestivamente os direitos constitucionais. Maior colegialidade nas deliberações tenderá a minimizar episódios em que decisões tomaram rumos inesperados e incongruentes.

Não por acaso, a reforma exposta na emenda regimental 58/22 foi encaminhada pela presidente do Supremo, a ministra Rosa Weber, a mais discreta, menos personalista e mais afeita a deliberações coletivas da Corte. A unanimidade com que a emenda foi aceita sugere que as modificações agora propostas poderiam ter vindo bem antes. Elas ainda precisam ser formalizadas, o que ocorrerá em janeiro. Sua direção é correta. A começar pela limitação objetiva aos pedidos de vista por ministros do tribunal, uma prerrogativa adequada para que possam indicar soluções fundamentadas sobre questões sobre as quais não estejam devidamente informados.

Hoje há 437 processos parados por esses pedidos, o que não chegaria a ser um problema desde que tivessem prazo para a devolução. Prazo há, de 30 dias, mas eles não são cumpridos e esse descumprimento fica por isso mesmo. Há processos aguardando voto de ministro que pediu vistas desde 2011.

A emenda estabelece que 90 dias úteis após o pedido de vistas, caso o ministro não tenha tomado uma decisão, o processo será liberado automaticamente para seguir seu curso de deliberação da Corte. “Sentar em cima” de processos cujo desfecho podem não estar de acordo com interpretações pessoais ou afinidades políticas e ideológicas de ministros é um expediente fácil e danoso para a Justiça.

Abortar na prática um processo em seu curso normal é uma forma de decidir monocraticamente, por omissão. Mas há monocratismo, e ele hoje é predominante, nas decisões exaradas por apenas um ministro, sem que haja na prática outra instância que as ratifiquem ou corrijam. Assim, nada menos que 85% das 89.813 decisões tomadas em 2022 o foram dessa forma (O Globo, 28-12). Com as mudanças propostas, o poder unipessoal é relativizado quando disser respeito a “medidas cautelares necessárias para evitar grave dano ou garantir a eficácia de decisão anterior”, ou ainda envolverem a prisão de cidadãos.

Um despacho de liminar, nestes casos, deverá ser submetido imediatamente para confirmação, segundo a competência, para uma das turmas do Supremo ou para o plenário, em ambiente virtual. Em caso de prisão, no entanto, ele deverá ser encaminhado necessariamente e de imediato ao julgamento de todos os ministros, em ambiente presencial. Caso a decisão liminar seja mantida, ela precisará ser referendada a cada 90 dias, pelo relator ou colegiado, conforme o caso.

Ações individuais de ministros criaram grandes tensões na história recente da República. Um ministro (Gilmar Mendes) decidiu impedir que Lula fosse nomeado ministro do governo de Dilma Rousseff, e ganhasse foro pivilegiado, enquanto outro ministro, mais tarde, permitiu que outro político às voltas com a Justiça fizesse parte do governo de Michel Temer. Teori Zavascki repreendeu Sergio Moro por sua ação ilegal ao divulgar gravações feitas ilegalmente, justamente as que deram base à decisão de Mendes para barrar Lula, que não foi revogada.

A ausência de estabilidade nas decisões, em parte fruto de conveniências ou convicções pessoais, fez estragos. Lula ficou preso por 570 dias porque o STF firmara entendimento de permitir o cumprimento de sentença a partir de condenação em segunda instância. Sem esse expediente a Lava-Jato dificilmente teria obtido as dezenas de confissões e acordos de leniência que arrebatou. A maré do STF voltou-se contra Moro, o tribunal voltou a exigir o trânsito em julgado da sentença e Lula saiu da prisão.

As mudanças propostas podem não tornar os ministros mais sábios, mas incentivarão o debate, o confronto de posições divergentes e, mais importante, a formação de um consenso, em vez da prevalência de apenas uma opinião sobre as demais. Talvez o STF se torne mais moroso - o tempo médio de decisão colegiada é de 359 dias -, mas também mais justo e menos errático.

 

2 comentários:

Anônimo disse...

O que eu mais admiro no nosso Rei, a integridade de caráter e sobretudo sua humildade. Nunca mais existirá no Brasil alguém que
nos orgulhasse tanto, ser predestinado e raro. Meu coração sangra por ELE.

Anônimo disse...

"Quem o viu jogar sabe quão ocioso é compará-lo a outros que tentaram reivindicar (ou usurpar) sua coroa."
QUANTA BOBAGEM! Poucos jogadores ousaram se comparar a Pelé! Na verdade, a imprensa e centenas de jornalistas é que sempre tentaram fazer comparações de jogadores com Pelé, fabricando notícias ou requentando matérias de outros tempos! Ou provocando jogadores para que estes se comparassem de algum modo ao REI... A imprensa esportiva consegue ser pior que a imprensa política!