terça-feira, 10 de janeiro de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Episódios como os de 8 de janeiro nunca mais

O Globo

Investigações sobre movimento golpista devem ser minuciosas para que julgamentos punam responsáveis

Os governos federal e estaduais devem trabalhar de forma incessante para debelar todo e qualquer foco de golpismo no país a partir de agora. Sempre dentro do limite da lei, é necessária uma política de tolerância zero contra o planejamento e a execução de invasões e depredações de prédios, bloqueios de ruas, estradas ou qualquer outra tentativa de quebra da ordem pública. O mote deve ser: 8 de janeiro nunca mais.

Manifestações de apoio e de protesto envolvendo esse ou aquele político ou partido fazem parte do jogo democrático. O cenário de devastação na Praça dos Três Poderes ontem, um dia após o ataque aos prédios do Congresso, Supremo Tribunal Federal (STF) e Palácio do Planalto, é prova de que a minoria de bolsonaristas radicais está em outra categoria. Para aqueles convictos de que o dia 30 de outubro de 2022 ainda não acabou e a solução é a violência, o peso da lei precisa ser implacável, respeitado o devido processo legal.

A mensagem deve ser óbvia a todos. Atos de terrorismo contra o Estado brasileiro não serão tolerados. Um primeiro passo foi dado com a prisão de cerca de mil pessoas em Brasília ontem e o desmonte de acampamentos nas imediações de quartéis em todo o país. É preciso fazer muito mais.

Sem hesitação, é urgente um minucioso trabalho de investigação. Falhas nessa etapa certamente facilitarão a vida de criminosos quando chegar a hora da decisão da Justiça. Por isso a necessidade de agir dentro da lei, ser ágil e cuidadoso na obtenção de provas, principalmente dos mandantes, que são tão ou mais culpados pela anarquia por terem insuflado ou financiado o movimento golpista.

Em algum momento, outros assuntos chamarão a atenção da opinião pública. Em meses, talvez alguns se perguntem se o quebra-quebra foi em janeiro ou fevereiro. Será um erro deixar o tema sair das prioridades do país até que os julgados como inimigos da democracia tenham recebido suas sentenças.

Punir os responsáveis é parte importante da estratégia para evitar novas ocorrências como a de domingo. Notícias sobre prisão servem como dissuasão até mesmo para quem acredita nas teorias conspiratórias mais fantasiosas sobre as urnas eletrônicas. Mas há sempre os radicais entre os radicais. Para impedir os crimes desse grupo, as polícias precisarão fazer melhor o trabalho de inteligência e agir preventivamente.

Foi evidente que a polícia do Distrito Federal falhou fragorosamente. Parece mentira que centenas combinaram o que fazer e se deslocaram à Esplanada dos Ministérios sem que diferentes órgãos policiais estivessem dispostos a agir. Diante disso, os governos federal e estaduais deverão deixar claro à parte da categoria favorável ao bolsonarismo radical que traições à Constituição não serão toleradas.

Caberá ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a toda a classe política unir o país contra os golpistas, que são uma minoria. Não há mais espaço nos discursos e declarações para conjunções adversativas (mas, porém, contudo, todavia...). Episódios como o de domingo são inaceitáveis numa democracia, não podem jamais se repetir e devem ser repudiados, sem ressalvas, por todos.

Ministro do Trabalho precisará se atualizar para atingir suas metas

O Globo

Ideia de resgatar a negociação coletiva é um passo atrás para quem quer a criação de empregos

Na reunião de sexta-feira entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seus 37 ministros, Luiz Marinho, o titular da pasta do Trabalho, não recebeu nenhuma reprimenda, nem indireta. Merecia. Em entrevista ao GLOBO, ele se comprometeu com “uma nova legislação para valorizar a negociação coletiva”, uma ameaça à exitosa reforma da legislação trabalhista realizada na gestão Temer, em 2017, responsável por flexibilizar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), assinada por Getúlio Vargas em 1943 e engessada pelo tempo.

O PT e aliados no Congresso sempre foram ardorosos defensores da intocabilidade da CLT, mesmo que a legislação fosse, e seja, a maior responsável pela ainda grande informalidade no mercado de trabalho. A empresa destinava aos cofres do Estado, em custos trabalhistas, o mesmo que pagava em salário ao empregado de carteira assinada. É por isso que em 2014/5, quando a parcela formalizada do mercado de trabalho chegou ao máximo, ainda havia 40% de informais.

A reforma de 2017 introduziu o conceito de que o “negociado” entre empregadores e empregados com seus sindicatos vale mais que o “legislado”, preservados direitos básicos como salário mínimo e férias, por exemplo, considerados inegociáveis.

José Pastore, sociólogo e ex-professor da Universidade de São Paulo (USP), cita como argumento a favor da reforma de Temer o fato de que, mesmo com a Covid-19, houve avanços no mercado de trabalho. A redução da insegurança jurídica do empregador foi uma delas, essencial para evitar um desastre na esfera do trabalho na pandemia.

Por isso causou estranheza Marinho ter criticado o contrato de trabalho intermitente e temporário. Ao contrário do que entende o ministro, todos os direitos trabalhistas da CLT são garantidos ao contratado. A oxigenação das relações patrão-empregado também se refletiu na redução substancial no número de demandas na Justiça Trabalhista, destaca o economista José Márcio Camargo, ex-professor da PUC-Rio e hoje economista-chefe da Genial Investimentos. O resultado final é que o custo para abertura de vagas de empregos formais caiu.

Mais uma informação para o novo ministro se situar em um cargo que ocupou há 16 anos é que a possibilidade de as empresas terem funcionários terceirizados também nas atividades-fim incentivou a formalização.

Um dos problemas para Marinho resolver é a ausência de algum sistema de garantia social para os trabalhadores de aplicativos, entre eles os motoristas de Uber. Essa é uma questão injusta que exige resposta. Mas o mundo digital está distante do universo sindical em que Lula e Marinho militaram. O ministro terá de se atualizar. Ele quer rever a reforma, para aumentar salários e criar empregos, mas é grande a possibilidade de ocorrer o oposto.

O dia seguinte

Folha de S. Paulo

o que o bolsonarismo delinquente obteve foi fortalecer repúdio ao golpismo

Passadas poucas horas desde o ataque de bolsonaristas às sedes dos três Poderes, tudo o que a turba delinquente conseguiu foi unir forças políticas, institucionais e sociais do país e do mundo no repúdio à baderna autoritária, além de favorecer o endurecimento da reação aos atos antidemocráticos.

Logo na manhã desta segunda-feira (9), os presidentes da República, da Câmara dos Deputados, do Senado e do Supremo Tribunal Federal divulgaram nota conjunta contra "os atos terroristas, de vandalismo, criminosos e golpistas" ocorridos em Brasília.

Da esquerda à direita, passando pelo PL de Jair Bolsonaro, líderes partidários condenaram a violência. O próprio ex-presidente, a uma distância segura nos Estados Unidos, declarou que depredações de prédios públicos fogem à regra democrática. Sindicatos de trabalhadores e entidades empresariais também se juntaram ao coro.

Na comunidade internacional, manifestaram-se do americano Joe Biden ao russo Vladimir Putin, aí incluídos o premiê conservador britânico, a ultradireitista primeira-ministra da Itália, o presidente reformista francês, vizinhos da América do Sul, o secretário-geral da ONU, o papa Francisco.

A resposta institucional à algazarra golpista foi rápida e dura. Com fundamentação ainda duvidosa, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, determinou o afastamento do cargo, por 90 dias, do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), tido até aqui como principal responsável pela inépcia escandalosa da segurança no domingo.

Também se determinaram a desocupação de acampamentos em frente a quartéis, enfim, e a prisão em flagrante de envolvidos em atos criminosos. Em Brasília, foram reportados cerca de 1.200 detidos.

Ao menos no curto prazo, a estupidez dos extremistas proporciona uma oportunidade política para o presidente que gostariam de derrubar —o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ora ganha a solidariedade do país e do mundo contra o arbítrio e a barbárie.

Da mesma maneira, o momento de comoção tende a elevar o apoio geral às medidas judiciais tomadas em nome da defesa da ordem democrática, que por definição não podem se afastar dos limites da lei.

Resta muito a investigar a respeito do deplorável episódio —seus participantes, líderes e eventuais financiadores; a extensão das perdas para o patrimônio dos brasileiros; as responsabilidades locais e federais pela desídia das forças de segurança. A tarefa exigirá das autoridades mais perícia e perseverança do que medidas de impacto.

Pobres no Orçamento

Folha de S. Paulo

Checagem do Bolsa Família deve ser 1º passo para revisão ampla de ações sociais

Acerta o ministro Wellington Dias, do Desenvolvimento Social, ao definir que a prometida ampliação de benefícios do Bolsa Família —que volta a se chamar assim, depois de ter sido ampliado sob o nome de Auxílio Brasil— só ocorrerá depois de uma revisão do cadastro de famílias pobres.

Há, de fato, evidências fartas de que a atual clientela do programa de transferência de renda se encontra inchada em razão de falhas nas regras de pagamento.

Nesse contexto, seria imprudência orçamentária lançar já o benefício extra de R$ 150 mensais por criança de até seis anos, compromisso de campanha de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Cumpre corrigir os erros do governo Jair Bolsonaro (PL) na criação apressada e eleitoreira do Auxílio Brasil, com o qual buscou uma marca própria na área social.

O mais óbvio deles foi ter fixado um mesmo valor, primeiro de R$ 400, depois de R$ 600 mensais, a ser pago por família, sem considerar o número de pessoas no domicílio. Com a norma injusta, instituiu-se um incentivo perverso.

De dezembro de 2021 para setembro do ano passado, o número das chamadas famílias unipessoais incluídas no programa saltou de 2,2 milhões para 5,3 milhões, o que não pode ser explicado por nenhum fenômeno demográfico.

Basicamente, os beneficiários compreenderam que era mais vantajoso forjar famílias de uma pessoa só —um casal, por exemplo, pode duplicar sua renda dessa forma.

Segundo cálculo da pesquisadora Leticia Bartholo, que estima um excesso de 2,2 milhões de domicílios no Auxílio Brasil, a revisão do cadastro poderia proporcionar uma economia anual perto dos R$ 16 bilhões, cerca de 9% dos R$ 175,7 bilhões previstos para o programa neste ano.

O governo Lula deveria ir além e promover uma reavaliação ampla de políticas públicas pouco eficientes voltadas, em tese ao menos, para a população carente. Seria corrigido, dessa forma, outro erro de Bolsonaro, que preferiu simplesmente empilhar mais gastos financiados com dívida do Tesouro.

A bandeira petista de "colocar os pobres no Orçamento" é retórica enganosa. Os pobres estão no Orçamento há décadas, como o demonstram, além do nunca descontinuado Bolsa Família, o sistema universal de saúde, a previdência rural, o fundo da educação básica e muitas outras iniciativas.

Faltam reformas para assegurar que recursos não acabem direcionados a estratos mais abonados e influentes, algo que a esquerda nacional tem dificuldade em fazer.

A cadeia de responsabilidades

O Estado de S. Paulo.

Há muitos responsáveis pela escalada de violência política que culminou na tentativa de golpe em Brasília. Todos, sem exceção, devem ser punidos nos limites de sua responsabilidade

Participantes de atos de violência devem ser punidos nos limites de sua responsabilidade.

O que aconteceu em Brasília no domingo passado, sobretudo a facilidade com que radicais bolsonaristas assaltaram as sedes dos Poderes para subjugar a República a seus desígnios liberticidas, só foi possível porque o espectro do golpismo se entranhou em instituições que deveriam ter prevenido a intentona ou, uma vez irrompida, tê-la detido com o emprego de toda a força autorizada por lei.

Dos serviços de inteligência ao policiamento ostensivo, muitos agentes públicos falharam, quando não colaboraram, para que o teatro de horrores há muito prenunciado virasse realidade.

Agora, a salvaguarda da democracia não se dará apenas com a desocupação da capital federal e a prisão de algumas centenas de extremistas. Esse é o mínimo obrigatório. É preciso identificar, processar e julgar todos que, de alguma forma, contribuíram para aquele desfecho nefasto.

Há responsáveis diretos pela escalada de violência que culminou no trágico 8 de janeiro, o mais grave atentado contra a democracia brasileira desde o fim da ditadura militar. O principal deles, não há dúvida, é Jair Bolsonaro.

O ex-presidente sempre estimulou com seus atos e palavras, ou até por meio de insinuações e silêncios convenientes, a hostilidade às instituições republicanas, a desconfiança em relação ao sistema eleitoral e as táticas terroristas de seus camisas pardas. Sim, é de terrorismo que se trata porque, graças a Bolsonaro, a partir de agora, qualquer aglomeração de indivíduos cobertos pela Bandeira Nacional ou vestidos com a camisa verde e amarela será tida como prenúncio de alguma arruaça ou coisa pior.

O governador afastado do Distrito Federal (DF), Ibaneis Rocha, bem como seu ex-secretário de Segurança Pública, Anderson Torres, também são responsáveis diretos pelo caos ocorrido em Brasília. Em entrevista coletiva, o ministro da Justiça, Flávio Dino, afirmou que Ibaneis Rocha pode ter sido “induzido a erro” por auxiliares que teriam minimizado a gravidade das movimentações do comboio bolsonarista. De toda forma, a responsabilidade sobre a segurança da capital do País é do governador do DF, que, para garanti-la, recebe aportes vultosos da União.

Mas a responsabilidade sobre o ataque golpista aos Três Poderes não pesa apenas sobre os ombros dos que lhe deram causa direta. Há uma ampla cadeia de responsáveis, com diferentes gradações, que devem ser identificados e punidos com o máximo rigor.

As Forças Armadas têm parcela de responsabilidade, sobretudo o Exército. Os militares não agiram para desmobilizar os acampamentos em frente aos quartéis. Só enxergou esses amontoados como “manifestações democráticas” quem tem uma compreensão obtusa de democracia. Nada há de democrático em pedir intervenção militar como forma de subverter o resultado de uma eleição livre e justa. Menos ainda é democrático manifestar-se com emprego de violência.

Ademais, há dois batalhões do Exército lotados no Palácio do Planalto: o Regimento de Cavalaria de Guarda e o Batalhão da Guarda Presidencial. Há de ser apurada a eventual omissão de militares que não contiveram os bárbaros na sede do Poder Executivo.

Na esfera política, a tolerância de líderes do Congresso com a miríade de crimes de responsabilidade que Bolsonaro cometeu também desaguou na intentona de domingo passado. Em meio aos escombros, muitos dos que agora se dizem democratas de corpo e alma há bem pouco tempo faziam vista grossa para os crimes de Jair Bolsonaro.

Por fim, mas não menos importante, é a falta de uma Procuradoria-geral da República digna do nome nos momentos em que o País mais precisou da instituição ao longo dos últimos quatro anos.

O País clama por uma resposta dura e rápida à tentativa de golpe de Estado. Do presidente Lula, espera-se a compreensão de que a gravidade do momento exige ampliar em seu governo a presença de forças políticas genuinamente comprometidas com o regime democrático. Só isso – a combinação entre a força da lei e a concertação política – será capaz de assegurar liberdades conquistadas pela sociedade com tanto sacrifício.

Ainda mais cuidado com a economia

O Estado de S. Paulo.

Assegurar governabilidade de Lula não é desculpa para ampliar gastos públicos ou para manter desonerações extemporâneas e irresponsáveis. Não há espaço nem tempo para erros

Toda discussão sobre a política econômica do governo de Luiz Inácio Lula da Silva ficou em segundo plano depois do ataque à democracia promovido por golpistas que se recusam a aceitar a vitória do petista na disputa presidencial. No entanto, a despeito do rastro de destruição que as manifestações deixaram no último domingo, há um país a governar, o que amplia ainda mais a responsabilidade do governo federal nas decisões que terá de tomar a partir de agora.

Como mostrou o Estadão, a equipe do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, prepara medidas de ajuste fiscal com o objetivo de estabilizar a trajetória da dívida pública em 76% do Produto Interno Bruto (PIB) nos próximos quatro anos e abrir caminho para reduzi-la depois desse período. Os cenários deixam claro o objetivo de impedir que a dívida bruta supere a marca de 80% do PIB até 2030. Trata-se de uma meta bastante desafiadora, diante de uma projeção de déficit primário de R$ 231 bilhões neste ano. Para enfrentar esse rombo, não há mágica. É preciso ampliar receitas e cortar despesas, uma ideia que tem muito apoio teórico, mas que encontra enormes obstáculos para a execução prática.

A primeira semana de governo não produziu boas expectativas. Para reduzir o buraco das contas públicas, a decisão óbvia a ser tomada era reonerar os combustíveis, tema que deu ao ministro da Fazenda sua primeira derrota pública. Trata-se de medida de caráter impopular, cujo impacto poderia ampliar a insatisfação com o novo governo, mas não há dúvida de que seria uma ação concreta na direção da reversão estrutural do déficit.

O dilema não está restrito, no entanto, aos combustíveis. Voltar a tributar setores que foram beneficiados sem justificativa técnica é algo mandatório, mas de difícil aplicação, tendo em vista a força de alguns setores econômicos e sua influência no mundo político.

Já apelar a receitas extraordinárias para diminuir o déficit tem efeito meramente paliativo e não funciona no médio e longo prazos. Para ficar em algumas das ações sugeridas pela equipe de Haddad para reverter o saldo negativo entre receitas e despesas, a utilização dos recursos do fundo Pis/pasep não sacados, cujo saldo é estimado em R$ 23 bilhões, tem efeito muito limitado. Já esperar que o incentivo à redução da litigiosidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) renda R$ 53,77 bilhões é quase risível. A maioria dos grandes contribuintes derrotados em disputas tributárias apela ao Judiciário assim que a discussão na esfera administrativa se encerra, em batalhas que chegam a durar décadas.

É sintomático e muito preocupante, portanto, que a primeira reunião oficial de Haddad e sua equipe no Ministério tenha dado pouca ênfase às ações de redução dos gastos públicos. A revisão de contratos e programas, segundo o plano apresentado, renderia R$ 15 bilhões, enquanto a autorização para executar despesas menores que as autorizadas pelo Orçamento geraria R$ 25 bilhões.

O desequilíbrio das contas públicas é um problema de caráter bem mais amplo e duradouro, tem múltiplas causas e não será resolvido com ações pontuais. Do lado das receitas, uma reforma tributária ampla é urgente para simplificar o sistema, mas também é preciso discuti-la com realismo. Uma proposta neutra, sob o ponto de vista da arrecadação, deixou de ser uma meta factível para o tamanho do Estado brasileiro e suas muitas deficiências.

Sem descuidar da imprescindível redução dos gastos públicos – que não são reduzidos trocando o seu nome por “investimentos”, como quer Lula –, o lado das receitas é o que pode garantir os melhores resultados de reequilíbrio fiscal. Nesse sentido, um programa de avaliação e revisão de políticas públicas se mostra urgente e essencial.

Os atos golpistas de domingo reduziram o espaço e o tempo para erros na política e na economia. Assegurar a governabilidade do terceiro mandato de Lula não é desculpa para ampliar os gastos públicos ou para manter desonerações extemporâneas. A responsabilidade é ainda mais necessária.

A antipolítica de deputados radicais

O Estado de S. Paulo.

Sob o pretexto de defender os ideais do partido, republicanos intransigentes ameaçam a capacidade de fazer política

Por quase uma semana a Câmara dos Deputados dos EUA ficou paralisada. Após os republicanos retomarem nas eleições de meio de mandato uma maioria estreita (222-212), o usual seria o líder do partido, Kevin Mccarthy, ser eleito presidente da Casa. Mas 20 republicanos, integrantes da Bancada da Liberdade, boicotaram Mccarthy. Sem um presidente, a Casa não pode votar leis, criar comitês ou empossar novos membros. Após 16 rodadas, na escolha mais longa desde antes da Guerra Civil, os amotinados aceitaram as concessões de Mccarthy e o elegeram.

Na superfície, essa deliberação pode parecer uma demonstração de vigor democrático: uma minoria fazendo valer seus votos em favor dos interesses de seu eleitorado. No fundo, ela exprimiu uma disfuncional disputa de poder, em que alguns deputados, incapazes de influenciar seus colegas com suas ideias, se aproveitaram da maioria frágil de seu partido para chantagem, debilitando as condições da legenda para defender os interesses de seu eleitorado.

A política é a arte de construir consensos em prol do interesse comum. Em certo sentido, a distorção proporcionada pela atuação da Bancada da Liberdade é oposta àquela causada pelas bancadas fisiológicas, com legendas ideologicamente amorfas dispostas a compactuar com o governo em troca de concessões às suas demandas paroquiais. Essa maleabilidade é justamente o que os radicais republicanos não toleram em Mccarthy. No entanto, nisso eles incorrem em outra disfunção: o fundamentalismo político, cujo resultado prático é a antipolítica. Sob o pretexto de defenderem o purismo do espírito republicano – menos governo, menos impostos e menos gastos –, não hesitam em sabotar a governabilidade do próprio partido.

Os eleitores elegeram uma Câmara republicana para fiscalizar a gestão de Joe Biden, investigar a desordem nas fronteiras e controlar as ambições democratas de ampliar gastos. Esse é o Compromisso com a América proposto por Mccarthy. A Bancada da Liberdade concorda com ele, mas quer essas medidas impostas de maneira radical, sem concessões.

A barganha de Mccarthy consistiu em dar às minorias do seu partido instrumentos para bloquear pacotes orçamentários e reduzir a quantidade de deputados necessários para promover um voto de desconfiança da presidência da Câmara. No entanto, com a pretensão de conquistar mais poder sobre a legenda, elas enfraquecem a capacidade do próprio partido de manter-se unido e oferecer uma oposição coerente ao Executivo. Agora, se Mccarthy não conseguir disciplinar os republicanos, o risco é que a Câmara de maioria republicana seja incapaz de fazer uma oposição responsável, controlando excessos do governo e estabelecendo compromissos, mas aja simplesmente como uma tropa antigoverno, incapaz de construir qualquer coisa. Isso pode agradar aos eleitores anti-establishment e render votos aos políticos radicais, mas não servirá ao interesse comum do povo, que pode retirar dos republicanos nas próximas eleições o voto de confiança dado no último pleito.

Poderes se unem para barrar novos atos terroristas

Valor Econômico

A grande maioria dos bolsonaristas não apoia atos violentos e não pode se sentir alvo de perseguições políticas equivocadas

Após a tentativa de golpe contra as instituições democráticas de 8 de janeiro, em Brasília, o governo recuperou a capacidade de ação para impedir que novas tentativas de bolsonaristas radicais incendeiem o cenário político. Os presidentes da República, da Câmara dos Deputados e do Senado manifestaram repúdio aos vândalos que depredaram a sede dos três Poderes, enquanto que acampamentos bolsonaristas eram desmontados em Brasília (com 1.200 presos) e outros Estados. O ministro Alexandre Moraes, do STF, determinou o afastamento, por omissão, do governador do Distrito Federal. As ações devem estancar o ímpeto dos golpistas, mas os efeitos políticos dos atos de domingo se prolongarão no tempo.

O terrorismo surgiu no vácuo da transição, na qual o presidente Jair Bolsonaro, que sempre incitou seus apoiadores contra as urnas e o Supremo Tribunal Federal, simplesmente sumiu de cena quando seus partidários mais esperavam dele. As chances de um golpe de Estado eram maiores com Bolsonaro no poder, como comandante em chefe das Forças Armadas. O timing das manifestações golpistas foi perdido e os bolsonaristas radicais careciam de rumo e apoio, restando-lhes semear o caos.

Bolsonaro não insistiu em levar sua aventura autoritária até o fim por lhe faltar apoio militar. As súplicas pela intervenção feitas às portas dos quartéis foram vistas com inegável condescendência, mas não muito mais que isso.

O fracasso político da iniciativa golpista foi tão grande quanto os atentados à democracia encenados em Brasília. Bolsonaro, confrontado no exterior com os atos de vandalismo, dissociou-se deles sem veemência ou convicção. No primeiro capítulo sobre quem de fato comandará a direita no país, Bolsonaro confirma as suspeitas de que não tem estratégia nem será capaz de construir movimentos organizados - nunca foi, até agora pelo menos, por ser indisciplinado e desinteressado demais para isso. Ademais, a pregação golpista de Bolsonaro por 4 anos, com os atentados, tende a trazer-lhe mais problemas com a Justiça do que já tem. A possibilidade de tornar-se inelegível não é desprezível.

O governo Lula atraiu de imediato uma união importante em torno de si, o que por algum tempo colocará as iniciativas do bloco bolsonarista radical nos partidos do Centrão na defensiva. A desmoralização trazida com os atos terroristas deve aquietá-los por ora. Valdemar Costa Neto, do PL, o maior partido da Câmara, cujo presidente de honra é o ex-presidente, disse que os atos de domingo não “representam” Bolsonaro e que acampamentos, sim, “foram exemplos de educação, confiança e brasilidade”. A rejeição em massa ao radicalismo abre espaço a candidatos a líder de uma direita moderada, que consiga o apoio de grande parte dos 58 milhões de pessoas que votaram em Bolsonaro.

O repúdio aos bolsonaristas radicais e ao espetáculo deprimente que encenaram no domingo, traz por si só capital renovado de boa vontade para com o governo de Lula. Sua divisa política de união e pacificação do presidente ganhou urgência. Mas as medidas oficiais executadas para impedir novas manifestações terroristas precisam estar de fato circunscritas aos radicais que apoiam o ex-presidente, e feitas no mais estrito respeito às leis. A grande maioria dos bolsonaristas não apoia atos violentos como os de Brasília e não pode se sentir alvo de perseguições políticas equivocadas.

Papel importante no apaziguamento político desempenham também os governadores eleitos com apoio de Bolsonaro, como o de Minas Gerais, São Paulo e Rio, que precisam demover atos radicais em seus Estados e somar-se sem condições a todas as medidas do governo federal que visem à preservação do ambiente democrático. Eles estavam presentes na reunião com Lula ontem à noite.

O choque terrorista fracassou e não se acredita que dele resultarão ações de maior envergadura, embora o perigo sempre exista, especialmente com grupos isolados e sem liderança discernível. Os mercados financeiros atuaram ontem com tranquilidade após os grandes tumultos da véspera. A bolsa teve ligeira alta, em um movimento que indicava que nenhuma das importantes peças da democracia fora irremediavelmente avariada.

Ao governo Lula compete agora reforçar as defesas do regime democrático o mais rapidamente possível e voltar seus esforços para enfrentar a difícil tarefa de remontar o Estado e de fazer o país crescer mais e de forma sustentável.

 

Um comentário:

Anônimo disse...

A cadeia de responsabilidade
O Estado de S. Paulo. 10/01/23

"Há responsáveis diretos pela escalada de violência que culminou no trágico 8 de janeiro, o mais grave atentado contra a democracia brasileira desde o fim da ditadura militar. O principal deles, não há dúvida, é Jair Bolsonaro."

Pois é, estadinho, a escolha não era nada difícil. Como pôde um jornal apoiar o golpe de 1964 e ainda apoiar o genocida q ora acusam de principal responsável por terrorismo?
Percebe-se q este periódico enxerga pouco, razão pela qual seus editoriais são cada vez menos valorizados.