segunda-feira, 1 de abril de 2024

Demétrio Magnoli - 1964, memórias corrompidas

O Globo

A motivação presidencial é péssima: não melindrar os quartéis

A esquerda ouviu, mortificada, o recado de Lula:

— O que eu não posso é não saber tocar a história para frente, ficar remoendo sempre.

O governo não participou de atos de memória sobre os 60 anos do golpe de 1964 e, ao contrário do que planejava o ministro Silvio Almeida, não houve nem haverá um pedido estatal de desculpas pelas violações de direitos humanos da ditadura militar. A motivação presidencial é péssima: não melindrar os quartéis. Haveria, porém, razão melhor: a ausência de um consenso nacional mínimo sobre essa parte sombria de nosso passado recente.

O pacto cívico-militar da transição, expresso na Lei de Anistia, corrompeu a memória nacional. Decretada em 1979, a lei destinava-se a proteger torturadores e assassinos.

De Sarney a Dilma, passando por FH e Lula, sucessivos governos confirmaram o pacto original, impedindo que o sistema de Justiça produzisse conclusões incontestáveis. Ao contrário da Argentina ou do Chile, nunca prendemos ninguém por crimes definidos como imprescritíveis. Não imitamos nem mesmo a África do Sul, que inscreveu tais crimes e os nomes dos criminosos em documentos judiciais. Mais que impunidade, escolhemos navegar por águas turvas.

Consequência: corrompeu-se a memória dos militares. As Forças Armadas continuam a batizar o golpe de Estado como revolução. Nas escolas militares, justifica-se o regime ditatorial. Nos dias 31 de março, ordens do dia quase celebram a ruptura da ordem democrática. Uma facção minoritária de generais e coronéis embarcou na trama golpista de Bolsonaro. Os quartéis melindrados convenceram Lula a esquecer o passado.

O pacto da anistia também corrompeu a memória das correntes de esquerda que se engajaram na luta armada. A reação à impunidade foi buscar uma espécie de reparação simbólica. A Comissão de Anistia tornou-se palco de celebrações das lideranças da opção aventureira. Nos círculos da esquerda derrotada, os guerrilheiros caídos foram convertidos em heróis da resistência. Por essa via, evitou-se a revisão crítica da estratégia das ações violentas “exemplares”.

A resistência efetiva à ditadura lastreou-se na firmeza de líderes políticos que insistiram em participar dos processos eleitorais viciados, na clareza das correntes de esquerda que rejeitaram a luta armada, na persistência dos movimentos sociais. As ações armadas emanaram da teoria do “foco guerrilheiro”, inspirada em Fidel e Guevara. Segundo sua lógica subjacente, a vanguarda em armas acenderia a faísca da revolta das massas. Na prática, porém, os assaltos a bancos, os sequestros de diplomatas e os ensaios de guerrilha na selva apenas ofereceram pretextos para o endurecimento da repressão estatal.

Na esquerda, a dura lição choca-se com a muralha do negacionismo. Poucos atrevem-se à defesa explícita da estratégia da luta armada, mas a corrupção da memória exprime-se por outros atalhos, como o apego ao regime castrista em Cuba e às ditaduras aliadas na Venezuela e Nicarágua. O valor das liberdades políticas e do sistema democrático circunscreve-se à retórica oportunista para consumo interno. Denuncia-se Bolsonaro, mas não Maduro ou Putin.

A narrativa protocolar da esquerda “anti-imperialista” sobre 1964 aponta o dedo acusador na direção dos Estados Unidos. É certo que a Casa Branca e a CIA ofereceram amparo ao golpe (e, também, que a reviravolta política promovida por Jimmy Carter acelerou, desde 1977, a “abertura” no Brasil). Entretanto o golpe teve as cores do Brasil.

1964 foi tramado nas nossas elites econômica, intelectual e militar. Contou com apoio significativo das classes médias urbanas e dos principais veículos de comunicação. O regime que dele resultou não era uma peruca imposta por malvados estrangeiros. Infelizmente, o bolsonarismo tem raízes sociais e históricas.

No Chile, no Uruguai e até na Argentina formaram-se consensos nacionais básicos sobre as ditaduras de meio século atrás. O Brasil, viciado na conciliação por cima, prefere ofuscar sua história, perpetuando estéreis guerras de narrativas. No fundo, é para conservar esse hábito que Lula decidiu não “ficar remoendo”.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Lula fez aquilo que a direita queria,Bolsonaro jamais afagou a esquerda.