O Estado de S. Paulo
Elon Musk parece um personagem fugido daqueles filmes de antigamente, mas extrapola. Suas ações reais sobrepujam a imaginação de Ian Fleming
O magnetismo dos filmes de James Bond
desapareceu na fuligem das estrelas. As pernadas do 007 descansam no passado. O
tipo criado por Ian Fleming, que pedia seu dry martini a bordo de um smoking da
cor da noite ou de um summer de alta alvura, perdeu o elã.
Não que não tenha sido bom. Era divertido o modo como ele se apresentava para a dama fatal: “Bond, James Bond”. Em dois minutos, os dois se beijariam e em seguida se perderiam entre um salto de paraquedas e um tiro de pistola com silenciador. Só depois de incontáveis piruetas por terra, mar e ar é que o casal teria direito a um happy-end. Caliente. Estávamos no período da guerra fria e o espião que tinha licença para matar nos presenteava com amores escaldantes. O espectador médio daquela época torcia pela manutenção do establishment e vibrava quando James e a namorada se atracavam entre lençóis depois de salvar a humanidade, o planeta, o capitalismo e a dinastia Windsor da destruição completa.
Os vilões, coitados, se despedaçavam e
ninguém se compadecia de sua sina. Superempreendedores biliardários sem
princípios, os bandidões mobilizavam ciência, força bruta e recursos infindos
para sujeitar o mundo inteiro aos seus caprichos – e, no fim, morriam
espetacularmente numa explosão atômica sacrossanta. O satânico Dr. No, o não
menos satânico Auric Goldfinger e tantos outros saíam perdendo. Subornavam,
chantageavam, extorquiam e perdiam. Recrutavam exércitos particulares,
manietavam governos e perdiam. Transformavam seu dinheiro em poder e seu poder
em opressão – e perdiam de novo. As plateias exultavam. Tomavam partido do
mocinho.
Hoje, as diversões públicas são outras. As
massas apressadas mudaram de assunto, deixaram o cinema para lá, preferem se
entorpecer com substâncias sintéticas para melhor chacoalhar ao ritmo de
pancadões repetitivos (seu mantra não tem palavras, somente estrondos
compassados) e votam em autocratas pirados. Quanto à sétima arte, esta
sobrevive na condição de excentricidade de intelectuais envelhecidos.
No entanto, a despeito do desprestígio dos
velhos blockbusters de 007, algo daquele velho script voltou a marcar presença
entre nós: o modelo dos vilões que faziam as vezes de antagonistas do espião
saiu das telas e, agora, comparece à chamada “vida real”. Desta vez, com
sucesso. Eles vencem e colhem todos os louros de ouro. O espectador médio, que
é o eleitor médio, mudou de lado, num cavalo de pau desnorteante.
As plateias de hoje, carregadas de
ressentimento porque a democracia não lhes entregou as delícias prometidas,
apedrejam o que julgam ser a política oficial. Querem ver o sistema incendiar.
Aplaudem de joelhos os magnatas que sabotam a ordem pública. A seus olhos,
ganância, prepotência e vaidade são virtudes cívicas. A diversão sádica é o
critério da legitimidade. A política foi engolida pelo entretenimento sombrio.
Você quer um sintoma? Elon Musk. Muito se tem
escrito nos jornais para descrever o psiquismo do empresário que saiu da África
do Sul para fazer a América. Seu compromisso é com o show performático, não com
a coerência. Alguns dizem – com acerto – que ele faz negócios na China e nunca
deu um pio sobre a ditadura que existe lá. Na outra ponta, quando se trata do
Brasil, o mesmo rapaz alardeia que a nossa democracia é uma ditadura (consta
que tem planos de fazer uns negócios esquisitos por aqui). Age assim e leva a
melhor. É o influencer dos influencers.
Elon Musk parece um personagem fugido
daqueles filmes de antigamente, mas extrapola. Lembra de longe o fictício
Gustav Graves, de 007, um novo dia para morrer, que usava o negócio de
satélites para assustar países resistentes a suas pretensões maníacas. Tem o
physique du role de um antagonista de Sean Connery. As suas ações reais,
contudo, sobrepujam a imaginação de Ian Fleming. Dono de um exibicionismo
extremista, quer ter supremacia sobre o mundo inteiro e quer as glórias do
espetáculo.
Não satisfeito, quer ficar high. Tem prazeres
narcísicos em ter poderes narcísicos e, em seu hedonismo consumista, põe a
contracultura a serviço do capital. O Wall Street Journal noticiou recentemente
que executivos e conselheiros da Space X e da Tesla, duas de suas companhias,
andam preocupados com a quantidade de drogas consumidas pelo chefe (LSD,
cocaína, ecstasy, cetamina e cogumelos psicodélicos, entre outras). Foi com
esse doping corporativo que o sujeito estreou na política brasileira.
Politiqueiros de segunda, destes que não
sabem a diferença entre ficção e realidade (ou entre propaganda e informação,
ou entre mentira e verdade), dedicam a Elon Musk uma sabujice despudorada.
Afirmam aos brados que o pobrezinho sofre perseguições indizíveis de temíveis
funcionários públicos. Veem nele o símbolo universal da liberdade.
Mas, gente do céu, liberdade de quê? De abusar de seu incomensurável poderio econômico para interferir na institucionalidade de um Estado que não é o dele? De ser infantil e truculento de um só golpe (de Estado)? Haja farsa. James Bond, que era um lacaio do império britânico, tinha mais integridade.
Um comentário:
Haahahaha
Muito bom!
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