Valor Econômico
Propostas do neoliberalismo venceram a narrativa dos anos 1990 e os reflexos dessa vitória ainda hoje estão presentes em todas as formas de relações sociais
Peço desculpas para voltar ao tema da
desindustrialização num momento em que o país, corretamente, só tem olhos para
atenuar a tragédia socioambiental gaúcha. Mas há muitos trabalhos acadêmicos
que merecem ser divulgados sobre a “tragédia industrial” e um deles,
diferenciado, é do pesquisador PhD Haroldo da Silva, da PUC-SP, que buscou uma
compreensão sociológica do problema, além da econômica. Ele partiu de uma
pergunta que o intrigava: a despeito do eficiente trabalho da Confederação
Nacional da Indústria (CNI) na área legislativa em defesa do setor industrial,
por que o processo de desindustrialização foi tão intenso no Brasil nas últimas
três décadas?
Haroldo dedicou quatro anos à investigação dessa questão e, no fim de 2023, apresentou sua tese de doutorado (“A Ação Política dos Industriais no Congresso”). Em resumo, concluiu que a Agenda Legislativa da Indústria (Ali), da CNI, cujas propostas tiveram alto índice de sucesso no Congresso, acabou atuando contra os próprios interesses da indústria.
O trabalho abrangeu o período de 1996 a 2021
e contemplou todos os projetos listados pela Ali em 26 anos. Nesse período, a
CNI-Ali foi nacionalmente reconhecida como representante legítima do grupo de
interesse dos industriais, como formuladora do plano estratégico de melhoria da
competitividade sistêmica do setor, para a redução do custo Brasil.
Em termos de legislação, a atuação legítima
de “advocacy” da CNI-Ali foi um sucesso. De 1996 a 2021, foram incluídos 3.165
projetos na pauta de interesse direto ou indireto do sistema industrial. A mão
do Estado regulando ou desregulando a economia foi o tema mais destacado, com
35% das propostas. Em segundo lugar vieram as propostas sobre questões
trabalhistas (23%), e em terceiro, as que trataram do sistema tributário (13%).
Segundo Haroldo, a CNI teve uma linha de
atuação flexível no campo da política. A opção de não ter uma bancada da
indústria (ao contrário do agronegócio), aparentemente uma debilidade, permitiu
dialogar com diferentes frentes, sem partidarismo, o que garantiu o sucesso na
defesa de seus interesses. Houve também elevada convergência com o pensamento
industrial de todos os governos do período. A mais alta convergência foi com
Bolsonaro, que teve 86% dos projetos enviados ao Congresso apoiados pela
CNI-Ali. Mas o governo Dilma obteve 83%, Lula 1 e 2, 77%, Temer, 74% e FHC,
71%.
Volta, então a pergunta do início: com tanto
sucesso na aprovação de medidas apoiadas pela indústria, por que a
desindustrialização avançou tanto nesse período?
A resposta do pesquisador pode ser resumida
em uma palavra: neoliberalismo. Sinteticamente, o neoliberalismo defende a
supremacia do livre mercado frente a qualquer intervenção (principalmente
econômica) por parte do Estado. Sua disseminação forjou o pensamento dominante
na política econômica mundial. Essa agenda neoliberal, advinda do Consenso de
Washington (1989), teria sido elevada ao paroxismo no Brasil, a ponto de os
próprios industriais, ideologicamente cooptados, jogarem contra seus próprios
interesses - contra o investimento produtivo e a favor da abertura comercial
ampla e do rentismo, por exemplo.
Para explicar essa incoerência dos
industriais, o autor da tese recorre ao sociólogo francês Pierre Bourdieu
(1930-2002): “Os dominantes só atingem essa condição tendo em vista a
cooperação, ainda que inconsciente, dos dominados”. E os industriais brasileiros
sucumbiram à dominação do setor financeiro. Muitos defenderam e defendem os
princípios neoliberais para ocupar os mesmos espaços de vários de seus pares,
sob pena de, ao questionar o “consenso”, perder seu capital, não econômico, mas
simbólico. Debater o neoliberalismo, escreve Haroldo, tem sido considerado algo
secundário pelos economistas dominantes, os ligados a bancos, que têm acesso
privilegiado aos meios de comunicação e formam a opinião pública. Na prática,
agem como se contrariar os princípios neoliberais fosse como negar a lei da
gravidade ou defender o terraplanismo.
O acolhimento das ideias neoliberais pelos
industriais nas últimas três décadas contraria frontalmente o modelo defendido
por Roberto Simonsen (1889-1948), o mais importante pensador brasileiro do
setor industrial, que presidiu a Fiesp e a CNI. Simonsen defendia um esforço de
industrialização sob liderança do Estado, a partir da planificação de uma nova
estruturação econômica. A proposta é bastante atual, mas distante da corrente
neoliberal que, em grande medida, conduziu ou influenciou os que conduziram a economia
do país nas últimas três décadas.
As propostas do neoliberalismo venceram a
narrativa dos anos 1990 e os reflexos dessa vitória ainda hoje estão presentes
em todas as formas de relações sociais. Elas estão travestidas, segundo
Haroldo, de “cantilenas” como “reformas, reformas, infinitas reformas”,
“austeridade fiscal”, “redução do tamanho do Estado e privatizações”,
“flexibilização de leis trabalhistas”, “abertura da economia” e “juros
elevados”.
Como receita dominante, essas propostas
também encontraram amparo no Brasil e seduziram, inclusive, parcela dos
intelectuais da academia e dos empresários industriais. Estes não conseguiram
compreender até agora, escreve Haroldo, que a opção pela agenda neoliberal,
irrestrita e ideologicamente cega, seja elemento central no processo de
desindustrialização. Relatos, fatos e dados evidenciam que aderir à agenda
neoliberal, sem ressalvas, não foi bom para a indústria brasileira.
Enquanto isso, nos países desenvolvidos há
uma evidente onda de retomada do apoio à indústria, com a pegada forte da
sustentabilidade. O ponto em comum é o Estado indutor em diferentes frentes de
atuação, pelo prazo necessário e suficiente para a transformação competitiva.
Um levantamento do Transnational Institute, da Holanda, verificou que entre
2000 e 2017, 884 serviços públicos foram reestatizados na Europa.
2 comentários:
Perfeito!
Um exemplo que confirma a tese apresentada pelo autor está no livro " Como a China escapou da terapia de choque ", de Isabella Weber.
Realmente perfeito! Magnífico, até!
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